Absolutismo e nominalismo: o rompimento do Tomismo

in #absolutismo2 years ago

Por Murray Rothbard

[Retirado de História do Pensamento Econômico: Uma Perspectiva Austríaca—Antes de Adam Smith, cap. 3, subcap. 2]

Junto com a ascensão do estado absoluto, teorias do absolutismo surgiram e começaram a lançar as doutrinas da lei natural na sombra. A adoção da teoria do direito natural, afinal, significava que o estado estava obrigado a limitar-se aos ditames da lei natural ou divina. Mas novos teóricos políticos surgiram, afirmando o domínio do temporal sobre o espiritual, e da lei positiva do estado sobre a ordem natural ou divina. O primeiro e mais influente dos defensores medievais do absolutismo foi Marsílio de Pádua (c.1275-1342), em seu famoso Defensor Pacis (1324). Filho de um advogado paduano, Marsílio se tornou reitor da Universidade de Paris. O estado, opinou Marsílio, é supremo e precisa ser obedecido em e por si. Essa glorificação do estado andou de mãos dadas com a negação de que a razão humana poderia vir a conhecer qualquer lei natural fora de éditos positivados do estado. Para Marsílio, a razão tinha de ser separada da justiça ou da sociedade humana. A justiça não tem fundamento racional; é puramente mística e apenas uma questão de fé. Os comandos de Deus são puramente arbitrários e misteriosos, e não são para ser compreendidos em termos de conteúdo racional ou ético.

Como corolário, a lei positiva não tem nada a ver com a reta razão; a lei é promulgada para avançar a “vida e a saúde do estado”. De acordo com Marsílio, a nação é um organismo, com o estado funcionando como sua cabeça. Como o Professor Rothkrug escreve: “Marsílio diz que o estado é um organismo vivo não sujeito a razão porque, como uma planta, ele se desenvolve de acordo com impulsos inatos”.[1]

A conclusão prática que Marsílio derivou de sua filosofia política é que o estado, seja reino ou cidade-república italiana, precisa ter poder absoluto em seu domínio, e precisa não estar sujeito a qualquer verificação temporal ou a jurisdição da Igreja. Assim, enquanto religiosamente católico, Marsílio antecipou a politiques na França e em outros lugares dois séculos depois, insistindo que a Igreja pode não ter poder temporal contra o estado. Marsílio previu e ajudou a provocar o rompimento da ordem medieval na Europa.

Também destruidora das conquistas da Alta Idade Média foi a ruptura ideológica com o Tomismo inaugurada no século XIV. Esse declínio emergiu do fideísmo franciscano, iniciado pelo grande rival inglês de São Tomás, João Duns Scotus. Costumava-se pensar que essa destruição foi trazida para uma conclusão lógica pelo franciscano do século XIV, o filósofo de Oxford Guilherme de Ockham (c. 1290-1350). O nominalismo ockhamiano, sobre tal tem se dito, negou o poder da razão humana para chegar a verdades essenciais sobre o homem e o universo, e, portanto, negou o poder da razão para chegar a uma ética sistemática para o homem. Só a vontade de Deus, perceptível pela fé na revelação, poderia produzir verdades, leis ou éticas. Deve estar claro que o nominalismo abriu o caminho para o ceticismo moderno e para o positivismo, pois, se a fé na vontade divina é abandonada, a razão não tem mais o poder de chegar à verdades científicas ou éticas. Politicamente, o nominalismo falhou em fornecer um padrão de lei natural contra o estado, e, portanto, se encaixava ao crescente absolutismo estatal da Renascença.

A recente academia, no entanto, lança sérias dúvidas sobre se Ockham e seus seguidores eram realmente nominalistas ou eram bastante essencialistas e crentes no direito natural. Assim, verifica-se que o eminente contemporâneo agostiniano de Ockham, o italiano Gregório de Rimini (d.1358) não era realmente um nominalista, mas um firme defensor do essencialismo, da razão e do direito natural. Em contraste com a visão costumeira de Ockham e seus seguidores, Gregório considerou que a lei natural vem não da vontade de Deus, mas dos ditames da reta razão, e ele foi até mais longe em direção a uma posição racionalista geralmente pensada ter sido inventada três séculos depois pelo filósofo e jurista protestante holandês Hugo Grócio. Essa posição sustenta que, mesmo que Deus não existisse, o sistema de direito natural seria dado a nós pelos ditames da reta razão, a violação da qual ainda seria um pecado. Assim, como Gregório disse: “Se, per impossibile, a razão divina, ou o próprio Deus não existir, ou tal razão estiver errada, ainda se alguém fosse agir contra a reta razão, seja angelical, humano ou qualquer outro se tal existir, ele pecaria”.


[1]     Lionel Rothkrug, Opposition to Louis XIV: The Political and Social Origins of the French Enlightment (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1965), p. 14.