Todos os dias ela acordava com um sorriso no rosto e o peito cheio de esperança. Vestia a roupa mais bonita que tinha, penteava os cabelos e calçava seu único par de chinelos velhos. Saía do quarto e, enquanto todos os outros internos da clínica se dirigiam ao refeitório para o desjejum e o primeiro coquetel de remédios do dia, ela seguia na direção oposta, rumo ao portão de saída.
No auge de sua adolescência seu maior sonho era sair da clínica psiquiátrica onde fora internada pela própria família. Não entendia muito bem o que havia acontecido. Sabia que as vezes era difícil controlar seu comportamento, e que isso deixava sua família com medo e raiva. Mas não era de propósito, e ela não queria perder o amor de seus pais por causa de algo que estava fora de seu controle. Apesar de se sentir triste estando entre tantos muros com pessoas estranhas e de hábitos esquisitos, viveu cada dia naquele lugar como se fosse sua única chance de cura e retorno ao lar. Se comprometeu com seu tratamento, pois diriam que ela ficaria boa e voltaria para casa tão logo estivesse curada.
Quando tinha nova crise o desespero batia no coração. Se não ficar boa, não pode sair - era o que diziam. E chorava de raiva de si mesma, porque não havia conseguido controlar a si. E chorava também de tristeza, imaginando o semblante dos pais ao saberem que ela não estava conseguindo progredir no tratamento. E por fim chorava de frustração, de sentir que estava se debatendo no meio de um oceano sem fim e sem ninguém que pudesse ouvir seus pedidos de socorro.
Nos dias de visita sentia uma pontada de solidão maior que o comum, quando via outros internos com seus familiares. Ninguém nunca fora vê-la, mas ela sabia que as condições de vida e financeira da família eram limitadas. Só não entendia porque também não ligavam para ela, mas com certeza deveria haver algum motivo que ela não sabia.
O fato é que justamente o desejo de ir embora a fez permanecer. E permaneceu firme em seu propósito até o dia em que ele se concretizou: ganhou alta. A clínica ficou de entrar em contato com a família para que pudessem ir buscá-la. Mas os dias passavam e ninguém aparecia. Mesmo assim ela acordava todos os dias sentindo que aquele sim, seria o grande dia.
Ficava encarando o portão que dava para saída, até que alguém vinha chamar para o café da manhã. "Não, eu vou tomar café lá em casa, com a minha família". Como já era de costume, convenciam-na de ir para o refeitório dizendo que eles viriam mais tarde somente.
E já há algumas semanas era assim que ela vivia; não vivendo. Passava todo o tempo à espera daqueles que jamais viriam. Ninguém teve coragem de dizer à ela que sua família havia se mudado sem deixar vestígios, e que em breve ela iria para alguma instituição de acolhimento.
Ninguém teve coragem de dizer que sua família não a queria mais. Não sabiam como seria o dia em que ela descobrisse a verdade, mas até lá não queriam mais deixá-la sozinha. E assim todos os dias, enquanto esperava aqueles que nunca viriam, ganhava um abraço e um afago de cada um da equipe técnica da clínica. Ela retribuía feliz, achava que estavam se despedindo. Não poderia saber que na verdade eles a estavam munindo de força e coragem, para que ela fosse capaz de enfrentar os maus dias que estavam por vir.
Ninguém tinha esperança de que a família fosse se arrepender e voltar, mas todos queriam acreditar que a lembrança recente do afeto concreto que ela recebeu, pudesse minimizar a ausência do afeto que ela nunca teve, mas que sempre acreditou ter. E assim, diariamente todos depositavam sua cota de afeto, na tentativa de fazer florescer a esperança. Não de ser salva, mas de salvar a si mesma.
Esse post é de uma série de crônicas que decidi escrever, baseadas em fatos da vida real, os quais foram extraídos da minha experiência e do meu cotidiano com famílias em situação de vulnerabilidade social e violações de direitos.
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