De Pastores a Imperadores: As invasões Nguni no Sul de Moçambique (pt. 4)

Gungunhane

Várias fontes, apontadas por Rita-Ferreira (1974), referem que Muzila teria tido seis filhos, mas que no entanto, não tinha indigitado nenhum para seu sucessor . Cinco nomes estão disponíveis na obra de Rita-Ferreira (1974): Mafumane, Mundungaz, Como-como, Anhana e Mafabaze. Em relação ao primeiro, parece não haver dúvidas de que foi assassinado sob ordens de Mundungaz. Mafumane teria sido o primogénito do falecido monarca de Gaza, no entanto a este último era-lhe permitido pelo direito consuetudinário a nomeação daquele que ele achasse mais competente para o cargo . O assassinato seria uma forma eficaz de erradicar qualquer hipótese de este se revelar contra Mundungaz. Como-como parece ter desaparecido, e por sua vez, Anhana e Mafabaze se tivessem posto a salvo após uma investidura de Mundungaz . É sugerido, no entanto, que o novo monarca terá vivido até ao fim do seu reinado atormentado pela possibilidade do regresso destes seus dois últimos irmãos . Mundungaz teria até mantido a morte de Muzila em segredo durante dois anos, até que considerar que a sua autoridade estaria firmemente estabelecida . Após a morte de seu pai, ordenou que a sua capital passasse a ser guardada por dois regimentos, um durante o período diurno, Amapepa, e ou no período nocturno, Amangonde . Isto, provavelmente para evitar o que se havia passado entre seu pai e seu tio aquando da sucessão dos mesmos.



Mundungaz teria adoptado posteriormente o nome de Gungunhane, guiado pelo intuito de infundir terror, pois seria esse o nome dado a profundas fendas, possivelmente abertas na época das explorações mineiras do Complexo Mutapa-Rozwi, para onde eram lançados os condenados à morte . Uma outra fonte aponta para o facto de que o nome constituiria uma corrupção ou adaptação do epíteto dado pelos Swazi ao seu rei, Ingwennyana (Leão), e talvez por esta razão terá este monarca sido chamado de “Leão de Gaza” .


A política agressiva contra os autóctones do território de Gaza, manteve-a, tentando vencer os Manicas em repetidas incursões às montanhas onde estes habitavam, e ordenou a cobrança de tributos no coração do território Chona .



Já em relação aos portugueses, enviou em 1885 a Lisboa dois indunas que em seu nome assinaram o Acto de Vassalagem, persuadido por um amigo do já falecido Muzila: José Casaleiro d’Alegria Rodrigues . Pela aceitação deste Acto, Gugunhana viu-se obrigado a proteger os interesses portugueses, a autorizar a abertura de missões e escolas e a permitir a instalação de um “residente” português com o fim de explorar determinado território e seus recursos . Em troca recebeu o título honorífico de coronel de segunda linha . No entanto, assim como seu pai, Gugunhana considerava-se politicamente independente. Recusou a concessões mineiras em Manica a um segundo “residente” por achar que se tratava de uma estratégia para os portugueses obterem mais terras, por um lado, e por outro enviou, em 1887, uma embaixada ao Governo do Natal, com a intenção de procurar conselho e orientação nas questões de interacção política com os portugueses . Por sua vez os ingleses no Natal não satisfizeram o seu pedido por acharem que isto seria desrespeitoso para com a Coroa Portuguesa .


Na dúvida em relação à autenticidade e representatividade dos induna que assinaram o Acto de 1885, foi decidido pelos portugueses, enviar à corte de Gungunhane o Secretário-geral do Governo, José de Almeida, duas vezes, sendo na segunda acompanhado por outros agentes públicos . Das duas vezes parece ter sido comprovada a submissão do monarca à Coroa Portuguesa, mas recusando no entanto, a concessão das minas de Manica . Só em 1888, José de Almeida conseguiu finalmente a autorização para que fossem exploradas as minas de Manica .





Nesse mesmo ano de 1888, Gugunhane casou com uma filha de Lobengula, monarca Ndebele, que por sua vez se havia casado no ano anterior com uma das irmãs do monarca de Gaza, forma de reafirmar as relações diplomáticas que se haviam estabelecido entre Lobengula e Muzila .


No ano de 1889, o Governador de Inhambane recebeu do residente politico na corte de Gaza, a infromação de que Gungunhane havia decidido transferir a sua capital para o vale do Limpopo, acompanhado de cem mil dos seus súbditos e cativos . Esta migração teria como causas: a expansão portuguesa dirigida contra os territórios de Manica; a necessidade de ocupar melhores terras de cultivo; a determinação de submeter os Chope, e assim assegurar a soberania na totalidade do território a sul do Save, com excepção das Terras da Coroa . Sob ordens do Governo-geral, Gungunhana e seus vassalos não deveriam hostilizar, nem sequer tomar medidas de defesa que se pudessem considerar provocadoras, permitindo que as hostes de Gaza procedessem sem resistência armada por parte dos portugueses . Á medida que ia descendo para sul, num deslocamento que teve a duração de seis meses, os grupos que ia encontrando e conquistando eram pilhados, e os habitantes eram incorporados nos regimentos Nguni, estratégia já utilizada por Chaka, por exemplo . Era assim de esperar que as fileiras Nguni fossem constantemente aumentadas, para além dos recursos económicos que eram saqueados.


Instalando a sua nova capital, sempre denominada Mandlakazi, primeiro perto da Lagoa Suli, em Cambana, e depois em Manguanhana, a fome chegou no entanto a atingir a própria Corte, o que rapidamente motivou incursões contra os Chope, conhecidos por serem abastados agricultores . Apesar de estes últimos se haverem unificado e oferecido resistência, foram sucessivamente derrotados, a sua população massacrada, e os seus territórios saqueados . A violência contra os Chope foi tal que Gungunhane ficou conhecido por estes como “o que faz tremer a terra” .


Como resultado dos das depredações sanguinárias do Império de Gaza aos autóctones que no seu território se encontravam, vários régulos se apresentavam frequentemente ao Governo de Inhambane pedindo protecção em troca de obediência e vassalagem . Estes tinham conhecimento da reduzida quantidade de recursos que aí afluíam, e no entanto, o Governador muitas vezes recusou as ofertas que estes régulos traziam, por temer represálias por parte de Gungunhana . Rita-Ferreira (1974) refere uma série de régulos que aí se foram apresentando com oferendas: Maunze em 1847; Nhacoongo, Inguana, Savanguana e Zonguza em 1859; Macupulana em 1869; Bogucha em 1875; Mazive em 1877; Binguana, Mazive e Muabsa em 1886. Perante a expansão portuguesa, e a “insubordinação dos régulos meridionais que considerava seus tributários, Gungunhana ordenou uma ofensiva geral ao distrito de Inhambane, dirigida por Mapinyana” . Foi enviado ao seu encontro o General Fornasini, não com a principal intenção de lhe resistir, ao que parece, mas “com instruções de lhe pedir que retirasse e que o Governo não tinha aceitado a vassalagem dos régulos em risco de serem atacados” .


No entanto o encontro não chegou a realizar-se pois os regimentos comandados por Mapinyana haviam já iniciado a ofensiva, derrotando o régulo Massinga . Em terras do Inguana, as forças portuguesas juntamente com os régulos aliados, dos quais os Chope faziam parte segundo Webster (2009), fizeram frente ao exército de Gaza, sofrendo mesmo assim uma pesada derrota no combate de Chicungussa, a 23 de Outubro de 1886 . Os autóctones, vendo-se com os seus números reduzidos, e os portugueses incapazes de os ajudar, refugiaram-se nas matas densas, e passaram a utilizar tácticas de guerrilha, na tentativa de resistir . Acabaram por ser presenteados num certo sentido pela fome e as doenças que enfraqueceram e dizimaram parte dos atacantes, vendo-se obrigados a bater em retirada . Em 1887 os regimentos de Gungunhane voltaram a atacar as Terras da Coroa e do Binguana, mas sem grande sucesso. Referido por Rita-Ferreira (1974), Sansão Mutemba diz que Gungunhane nutria um ódio pessoal por Sipadanhana, filho de Binguana, que por sua vez era um dos grandes líderes Chope. No hábito que já outros líderes nguni tinham em fazer cativos e educar os filhos dos chefes de outras etnias em batalha vencidas, Muzila teria capturado Sipadanhana, que por sua vez cresceu junto de Gungunhane . Parece que durante a juventude de ambos, Gungunhane teria desenvolvido uma acirrada rivalidade com Sipadanha por ser este último a triunfar nos jogos, caçadas e outras competições de destreza e resistência . Sugere-se então, que essas memórias seriam um dos motivos por tão insistente ofensiva militar ao território Chope e à sua população.





Rita-Ferreira (1974) considera ainda erróneo achar que as ofensivas militares de Gungunhana se constituíssem como uma ofensa ou desafio contra a Coroa Portuguesa. O que este autor refere é que o monarca de Gaza apenas se considerava senhor das terras ao Sul do Chicomo. O Intendente Geral junto da corte de Manjacaze, lugar criado em 1889, parecia partilhar da mesma opinião . Considerava-se que a ofensiva de Gungunhana teria toda a legitimidade pois aquelas terras seriam pertencentes ao território de Gaza, como firmado no Acto de Vassalagem, oferecendo ainda auxilio militar, nomeadamente com “artilharia e outro armamento moderno”, ao monarca . As vantagens que as sucessivas campanhas de Gungunhana representavam para a Coroa Portuguesa são óbvias: “poder reforçar a ocupação do território e ainda conseguir aliados numerosos e decididos” . Submetendo à vassalagem o Monarca do maior Império a sul do rio Save, e talvez de todo o território que hoje se conhece por Moçambique, resultaria na possibilidade de explorar o território, através da obtenção de concessões mineiras por exemplo, e subverter os povos autóctones que Gungunhana e os seus induna massacravam e saqueavam, impunham o pagamento de tributo, etc. Criava ainda a hipótese de poder negociar com os régulos hostis a Gungunhana, e através de uma hábil diplomacia, conseguir que todos aqueles grupos étnicos acabassem por se encontrar numa situação de tal fragmentação e enfraquecimento, que possibilitasse submeter grande parte deles a vassalagem. Pelo menos, a máxima “dividir para reinar” parece aqui aplicar-se.


Neste contexto, e como foi já referido, a diplomacia não era uma prática de todo estranha aos à Corte de Gaza no geral, nem para Gungunhana em particular. Este aceitou, em 1890, em conceder os direitos de mineração e de passagem pelo seu território, até ao oceano Índico, aos ingleses, após longa negociação por parte da British South Africa Company (BSA Company), na pessoa de Cecil Rhodes . Em troca recebeu “mil espingardas, vinte mil cartuchos e um subsídio monetário anual” .



Apesar das relações que Gungunhane mantinha com Portugueses e Ingleses, as relações entre estes dois últimos no palco europeu, acabariam por pressionar o monarca de Gaza a uma última série de conflitos. Com o crescente interesse das potências europeias pelo território africano, sendo disso excelente exemplo os acontecimentos decorrentes na década de 1870, o Congresso de Berlim, e os acordos e disputas que se seguiram, na necessidade de delinear fronteiras (europeias) sobre o mapa africano . O problema do Mapa Cor-de-Rosa, do Ultimato Inglês, e do contrato que se veio a celebrar entre portugueses e ingleses, a 11 de Junho de 1891, acabou por dividir o Império de Gaza entre território moçambicano e sul-africano . Como consequência, o território avassalado por Gungunhane viu-se significativamente reduzido . Nesse mesmo ano, dois indunas de Djambul, tio do monarca, e governador dos territórios do actual Limpopo e Caniçado, foram presos e enforcados pelas autoridades sul-africanas, como consequência da ofensiva que haviam lançado contra povos ribeirinhos dos rios Letaba, Sunguedzi e Chica . Segundo Rita-Ferreira (1974), os esforços diplomáticos que Gungunhane procurou manter, quer com o Governo Português e Inglês, quer com a Companhia de Moçambique e a BSA Company, não produziram resultados palpáveis. Das mil espingardas que havia recebido, oitocentas foram destruídas num incêndio em 1993 . Os emissários que havia enviado ao norte do Save incumbidos da recolha de tributos, acabaram “sumariamente rechaçados” . A esta “onda de azar”, a estes acontecimentos que enfraqueceram cada vez mais a segurança e a soberania de Gungunhana, veio somar-se-lhe a recusa de Gungunhane em entregar dois régulos rebeldes das Terras da Coroa, a quem o monarca tinha concedido asilo político .


O confronto entre os regimentos de Gungunhana e os da Coroa Portuguesa ocorreu no ano de 1895, depois de dos segundos não terem dado resposta definitiva aos pedidos de paz do primeiro . Tomando conhecimento que o Coronel Galhardo, partido de Chimoco, avaçava sobre Mandlakazi, enfrentou-o em Coolela, a 7 de Novembro do já referido ano, tendo como resultado, segundo Rita-Fereira (1974), a derrota dos regimentos de Gungunhana, que avançando na formação clássica de meia-lua, foram “imediatamente desbaratados pela nutrida fuzilaria das espingardas, metralhadoras e peças de artilharia” . A capital real, acabou por ser tomada no dia 15 desse mesmo mês, para ser saqueada e posteriormente incendiada, sob ordens dos chefes aliados dos Portugueses . O monarca já se havia retirado para Chaimite, onde habitava a sua mãe, e onde se encontrava o túmulo do seu avô, Shochangana (ou Manucusse), esperando talvez protecção sobrenatural por parte deste, alega Rita-Ferreira (1974).







A 10 de Dezembro de 1895, Mouzinho de Albuquerque foi nomeado Governador Militar de Gaza, e deliberou lançar-se na perseguição de Gungunhane, obtendo sucesso 18 dias depois, “sem se deparar com qualquer resistência dos milhares de Guerreiros que o cercavam” . Após a sua captura foi exilado para a Ilha Terceira, juntamente com Molungo, seu tio, o príncipe herdeiro Godide, e o régulo ronga rebelde N’uamantibjane . Acabaria por falecer Gungunhana, o último monarca do Império de Gaza, a 23 de Dezembro de 1906 .

Veja também:

De Pastores a Imperadores: As invasões Nguni no Sul de Moçambique
De Pastores a Imperadores: As invasões Nguni no Sul de Moçambique (pt. 2)
De Pastores a Imperadores: As invasões Nguni no Sul de Moçambique (pt. 3)

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Parabéns pelo post @martusamak está muito bom! Agora deixo aqui uma curiosidade "Gungunhana, foi trazido para Portugal como prisioneiro, tendo o Batalhão de Caçadores nº 3, sediado no castelo de Bragança participado nessa prisão. Graças a doações de militares, no Museu Militar de Bragança encontram-se expostos vários objectos alusivos ao régulo moçambicano, destacando-se a réplica das suas calças e camisa, além de diversos utensílios da arte indígena africana com fins votivos e defensivos."
in http://ferradodecabroes.blogspot.com/2008/05/blog-post.html
Outra é que as roupas de Gungunhane ou Gungunhana, como se chamava por cá, se encontravam no mesmo museu em exposição, infelizmente por uma questão de conservação, no presente tem exposto uma réplica. A exposição e destaque a esta figura no museu, para além de do referido no seu post, deve-se ao facto de Gongunhana ter sido um grande guerreiro e um guerreiro grande! =D
Cumps

Também conheço o Museo Militar de Brangança e as peças de que me fala. Efectivamente, Gungunhana era um guerreiro"grande"! Muito obrigado pelo comentário! Já conheces o projeto @steemitportugal?

Ainda não conhecia o projeto @steemitportugal. Obrigado pela informação, vou de seguida dar uma vista de olhos!
Cumprimentos