Os três homens (o velho sacerdote continuava adormecido) levantaram-se em sinal de respeito. Aira foi ao seu encontro, sorriu para Dérop e beijou a face de Diáfana. Esta respondeu com uma carícia delicada no rosto de Aira e disse baixinho:
— Vésper está a caminho, e não vem só… Ânimo! — Entretanto os outros cumprimentaram a mulher idosa. Ela e Imhotep eram amigos de longa data, desempenhando tarefas deveras semelhantes ou complementares: este tratava as maleitas e achaques do corpo e Diáfana dedicava-se a cuidar das almas. Apesar da idade avançada, o seu donaire era o mais prazenteiro e apaziguador, com sentido de humor delicado e boa disposição, não tolerava a grosseria. Entusiasta das artes e da erudição, nutria especial ternura por Virtuoso e Erudito.
Já estavam todos de novo acomodados nas almofadas que Aira ia trazendo, bebendo as tisanas fumegantes e provando os deliciosos bolinhos. Desta vez, Aira juntara pequenos potes de mel para os mergulharem, e natas frescas para os morangos. Ebúrneo continuava ‘aninhado nos braços de Morfeu’, dando lentamente indícios do despertar. Diáfana pousou a mão esquerda no coração do sacerdote, na outra segurava uma pedra que se dizia «ser mais velha que o Mundo, que teria sido a primeira a solidificar, a que guardaria a alma do Universo». Sentada de costas para a grande entrada, mantendo a proximidade com Ebúrneo, interrompe o silêncio que se instalara:
— Queridos D’Ouro e Constante, — olhando para Virtuoso e Erudito, respectivamente (ela tratava-os pelo nome da alma, por razão óbvia) — sei que têm discutido muito, espero que tenha valido a pena o tempo dedicado, que as vossas almas se tenham engrandecido, e os vossos corpos não tenham sofrido os malefícios da exaltação e provocação desmedidas, dando assim mais trabalho a Imhotep… — Este riu fazendo um gesto com a mão como quem diz «é o costume».
Já D’Ouro Virtuoso e Constante Erudito ficaram como dois rapazinhos desconcertados sorrindo desajeitados olhando para os bolos e mordiscando-os, justificando assim o seu silêncio, uma vez que nada tinham para dizer, e até era mais sábio que o fizessem. Lembraram-se da primeira coisa que Diáfana lhes ensinara quando crianças: «saber ouvir é tão mais importante, para que no futuro não sejamos meras cabeças falantes». Diáfana, parecendo que lhes lia o pensamento, disse-lhes:
— Há coisas que as árvores falam que não são para nós ouvirmos. Das pequenas, apenas o gorjeio, e esse atribuímos às aves canoras, depois as sinfonias, e essas só as escutamos se tivermos aprendido os silêncios entre as folhas!
— Que farei daqui em diante com estes dois ouvidos que não sabem ouvir…? Com estes dois olhos que não sabem ver…? Com este coração cansado de tanto sentir… o que farei? — murmurava Ebúrneo ainda deitado, com voz triste e arrastada, enquanto uma lágrima caía devagar na direcção do ouvido. D’Ouro e Constante ajudaram-no a sentar-se confortavelmente, e apressaram-se a dar-lhe uma bebida quente e alguma comida, que gentilmente declinou. Imhotep assegurou-se da saúde do ancião, e Diáfana pousou a ‘pedra-alma’ no centro do grupo.
Com a capacidade única de entrar no mundo dos sonhos, Dérop era também caracterizado pelo uso da ciência na busca das verdades, e, no trato com os outros, de uma generosidade humana desarmante; e foi assim que ele se dirigiu ao Guia do templo:
— Gentil Ebúrneo, não carece que se atormente mais, não me parece que haja algo de errado com a sua audição ou visão. Irá ouvir atentamente todos os desnorteados de espírito sempre que o procurarem; com a sua visão do Divino, dar-lhes-á os conselhos que lhe pedirem… quanto ao coração cansado, é sinal de ter feito o seu trabalho, e de tanto sentir, não será antes uma bênção…? Não lhe parece?
Ebúrneo tinha a expressão de quem digeria luminosamente aquelas palavras. Todos estavam fixados em Dérop, o seu pragmatismo vestia um subtil serpenteado poético. Já há muito que Dérop defendia que a Arte e a Ciência viviam um casamento secreto, deixando claro que outros antes dele o haviam afirmado e comprovado. Segundo ele, tudo se complementa, cada pergunta encerra em si mesma a resposta!
O ambiente ficou mais leve. Ebúrneo, ainda pensativo, lá provava um bolinho de amêndoa e canela. D’Ouro e Constante atacavam os frutos silvestres. Imhotep, satisfeito por mais uma vez ter sido útil, soprava e beberricava um chá preto acabado de fazer. Diáfana recostara-se com os olhos fechados, parecia descansar; a viagem até ali tinha sido longa e o seu rosto apresentava algum cansaço, por isso, Aira hesitou antes de recomeçar.
Nesse instante, Dérop, que se encontrava ao lado de Aira, sentiu-se levado a olhá-la: surpreendentemente o seu perfil tinha envelhecido drasticamente, o longo cabelo de ondas douradas, que a noite sempre escurecia parecendo ouro velho, era agora não mais do que uma cabeleira branca invernosa, e, tal como anteriormente as cortinas do salão, erguia-se no ar em duas metades, como se a própria Aira estivesse em pleno voo e o cabelo fosse um par de asas, imóvel e serena, como uma figura de proa… parecia não se aperceber de nada.
Dérop olhou para os convivas que continuavam entretidos, sua mãe dormia, tudo parecia acontecer em duas velocidades, duas realidades concomitantes, e ele ser de ambas a única testemunha. Estendeu a mão para lhe tocar nas madeixas esvoaçantes e teve a sensação nítida de ver a sua própria mão a tentar atingi-lo de volta, como se de um espelho se tratasse. No mesmo momento tudo se desfez e Aira, já com a aparência normal, dizia-lhe baixinho, como se nada lhe tivesse acontecido:
— Diáfana falou-me que o nosso filho está para chegar, presumo que já o soubesses. Sinto-me tão feliz e leve que estou com dificuldade em manter os nossos comensais focados no cerne da questão. Seja como for, este assunto deve ser resolvido com a maior brevidade, não concordas?
Dérop, ainda apanhado pela recente experiência, apesar de não ter sido a primeira vez que algo de extraordinário acontecia a Aira, concordou sorrindo, afirmando que também ele não cabia em si de felicidade pelo regresso do seu filho.
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A seguir…
O Conto da Orbe | Episódio 4
Vésper do Sul — “Espaço para renascer”
Na ilha de Nana, Vésper constrói amizades preciosas que o acompanharão para a vida.
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