Quando chegou a casa já estava escuro, as luzes do estaleiro estavam apagadas — facto que estranhou; àquela hora era costume ainda estarem a trabalhar. Viu pela janela da casa Guilherme e Gui que jantavam na companhia dos quatro homens. Ficou a observá-los por um bocado a distância, e decidiu que não queria falar com ninguém, nem tão pouco saber de mais nada. Pelo menos, não naquela noite… Entrou em casa sem fazer barulho e deitou-se, adormecendo de seguida, e sonhou: sonhou com o Vésper de sete anos, e com um reencontro antecipado sob um céu estrelado desconhecido, os ventos solares buliam com o pequeno mundo, provocando ondas coloridas fascinantes, manchando-o de verde, azul, violeta e vermelho, como quem atira tintas vivas contra uma tela negra. Um pequeno pássaro voava na sua direcção trazendo atadas às suas pequenas patas as cores da aurora, que iam alastrando ao tocar o mar, como aguarelas. De súbito, via-se de mão dada com uma rapariga, os dois de costas. Era Gaia, que ele beijava suavemente nos lábios. Quando se afastou, viu que afinal o rosto era o de Sara. Sentiu-se abanar, e eis que acordou com Gui a agarrar-lhe no ombro, agitando-o, pedindo-lhe que se apressasse; precisavam dele na praia com urgência.
O sol mal tinha despontado, Vésper ainda meio ensonado tentava vestir-se sob a pressão que o amigo alimentava, sugerindo-lhe ainda mais rapidez. Por fim saíram os dois jovens para a praia, Gui saiu na frente de Vésper que o seguia com os olhos postos no último botão da camisa que acabava de abotoar, o amigo afastou-se para o lado, e o jovem viu na sua frente, fora do estaleiro, a embarcação mais bela e elegante de sempre. Ao lado estavam o velho e os quatro homens exibindo os seus famosos sorrisos; por cima das suas cabeças podia ler-se na parte superior do casco: Vésper do Sul.
— É um palhabote. O ‘teu’ palhabote — disse o velho, avançando para o jovem boquiaberto. — E então, é do teu agrado?
— É… de tirar o fôlego! Mas… mas…
— O fôlego e as palavras, pelos vistos… Agora já só te falta traçares as tuas rotas, e que os bons ventos te enfunem os panos, cuja seda, manuseada por mãos de sabedoria intemporal, terá sido fiada e tecida com fios de aranha, método que se diz ter sido ensinado pelos deuses, garantindo a invulnerabilidade das velas; em troca, os homens não deixariam nunca de navegar… Seja como for, só sei que isto tudo faz dos armadores das Escarpas do Norte os meus melhores clientes! — O seu rosto moreno com olhos de mar traduzia triunfo e serenidade, parecendo bastante novo. Vésper podia jurar que o velho era na verdade, naquele momento, quase da sua idade. Saindo do espanto, e com uma alegria transbordante, o jovem abraçou Guilherme e Gui, rindo entre agradecimentos, não conseguindo tirar os olhos do palhabote, como se de um encantamento se tratasse.
Era deveras especial. Já tinha visto outras embarcações construídas por aqueles artesãos cuja mestria sempre o espantara, mas esta era, sem dúvida, a mais requintada: desde as suas linhas esguias com os dois imponentes mastros, às singulares velas latinas, às talhas de madeira delicadamente trabalhadas ornamentando os lados de fora da proa com a peculiar âncora recolhida a estibordo, em contraste com a simplicidade pragmática do costado pintado de branco, deixando ver — por estar ainda em seco — a peça forte de ferro determinando uma quilha capaz de rasgar o mais obstinado dos mares, e o casco submerso todo em cobre, que carregavam a assinatura do conhecimento dos quatro homens sobre metais. Gui fez questão de salientar, orgulhoso, que todas as madeiras usadas eram da ilha de Nana.
Depois das manifestações ruidosas, e de elogiar justamente os seis homens, Vésper dirigiu-se a Gui admitindo que já o deveria conhecer melhor e ter, pelo menos, suspeitado que, de todo aquele secretismo, o resultado só poderia ser bom! Olhou para o velho que os fixava, e antes que pudesse falar, foi invadido pela sensação estranha de que Guilherme já ali não estava… — este no entanto permanecia de pé na sua frente, apenas franzindo a sobrancelha. Vésper apressou-se a dizer, sorrindo:
— A paciência é sempre recompensada…
— … Se soubermos como preencher o tempo de espera! — completou o velho. Desta feita, e ao contrário de há pouco, com o semblante pesado e antigo. Mas ao mesmo tempo a serenidade continuava com ele.
Vésper olhou para a bela embarcação, mirou-a bem, e sem pensar levou a mão ao bolso das calças, sentiu a carta dobrada, apertou-a suavemente e, sorrindo, como quem acaba de ter uma epifania, pousou a outra mão no casco e anunciou:
— Eu te dou o nome da alma «Periélio Vésper do Sul».
Nesse instante, os quatro homens silenciosos cortaram as amarras, e a embarcação deslizou pelos carris mergulhando a quilha, qual virgem recebendo o seu amante numa entrega irreversível. Ficaram todos mudos a observar a cena, hipnotizados, até que o Periélio Vésper do Sul parou suavemente, preso pelo proiz solidamente atado ao tronco da árvore do velho, o grande salgueiro que, contra todas as probabilidades de ser uma árvore de grande longevidade, era, segundo ele, «o primeiro habitante da ilha de Nana» como costumava dizer, fazendo-lhe festas na casca dura e enrugada, como um cumprimento a uma velha amiga cúmplice na vida, quando se sentava encostado a ela para as suas sestas, embalado pela música da água do pequeno riacho remexendo as pedrinhas ao passar, em dueto com o chilrear dos vários pássaros, e, pouco a pouco, o crescendo passava a sinfonia. Guilherme dizia que era assim que lavava a sua velha alma.
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A seguir…
O Conto da Orbe | Episódio 7
Vésper do Sul — “Um pequeno sopro de nostalgia”
Vésper recorda o velho Guilherme e a sua personalidade insondável.
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