Repórter da revista Horizontes narra o caminho de um autista em busca de apoio na rede pública de saúde
Nasci em 18 de fevereiro de 1995 no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Me chamo Matheus Lourenço Oliveira e Silva e tenho Asperger – um transtorno do espectro autista. Tudo começou quando comecei a ler aos três anos e minha mãe, Elisiane, percebeu que eu tinha algo diferente. Minha parte intelectual era muito avançada para uma criança da minha idade. Eu fazia contas de porcentagem, sem estímulo algum. Mas as partes motora e social não acompanhavam. Aos poucos foram aparecendo outras dificuldades: usar talheres, desenhar, recortar e pintar.
Minha mãe me levou a psicopedagogos, médicos e outros especialistas. Nada resolvia. Fui a um neurocirurgião pediatra, que fez diversos exames e não constatou problemas neurológicos. Com seis anos fui para a Escola Estadual Ceará. Eu já sabia ler. Minha mãe sempre era chamada na escola porque eu me metia em confusão – não conseguia brincar com meus colegas. Nessa época tive ajuda de uma psicóloga, que por meio de um teste de personalidade constatou que eu tinha baixa tolerância à frustração – e só. Fiz a primeira série no Ceará e com oito anos fui para a Escola Cristã da Brasa, colégio particular que pertencia à igreja que eu frequentava.
Com nove anos eu produzia meu próprio jornal e vendia perto de casa. Comprava o Diário Gaúcho, selecionava o que me chamava a atenção, recortava as informações e fazia um jornalzinho de uma página escrito à mão. Conforme o dinheiro que tinha eu fazia cópias para vender. Sempre fui muito bom em matemática e conseguia ter um lucro de 50% nas vendas. Na época eu não tinha nem ideia de que tinha Asperger, mas desde aquele tempo eu sabia o que queria: trabalhar com comunicação.
Uma conhecida da minha mãe, que é enfermeira em um posto de saúde da Zona Sul me indicou para o Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi), lá fui diagnosticado com Asperger logo no primeiro dia. A psiquiatra lamentou o diagnóstico ter sido tão tardio, em setembro de 2009, quando tinha 14 anos. Mas pouco adiantaria ter sido diagnosticado antes, já que a rede pública não consegue atender os portadores de autismo, já que lá não existe acompanhamento específico para atender casos como o meu, apenas em clínicas particulares. O diagnóstico foi um alívio para a minha mãe – e o fim de uma busca que durou mais de dez anos.
Eu ia uma vez por semana no CAPSi. No início eu não aceitava muito bem. No fundo, achava que podia ser “normal”. Meu irmão, Elio, frequentava psicóloga e conseguiu ter alta – e eu não entendia porque eu não conseguia. O acompanhamento do CAPSi também não era adequado para a minha síndrome. Existiam muitas crianças, com diversas patologias, juntas no mesmo tratamento.
E o que eu fazia lá? De oficinas de culinária a aulas de futebol, mas nada que me ajudasse a lidar com o Asperger. Uma vez por mês eu ia à psiquiatra. Com 17 anos, fui tirado das oficinas. Com 18 atingi o limite de idade e saí do CAPSi. E aí fiquei num limbo: o CAPS adulto trata pessoas com transtorno bipolar, dependência química e outras doenças, mas não trata autismo. Fiquei sem acompanhamento dos 18 aos 20 anos, quando fui atendido no Hospital Psiquiátrico São Pedro.
Lá, eles confirmaram o diagnóstico de Asperger. Fiz exames e fui medicado. Os médicos recomendaram fazer uma avaliação genética no Hospital de Clínicas, mas não pude fazer por causa da minha idade, visto que a avaliação é apenas para crianças. Eles não queriam me dar alta sem me encaminhar para um especialista, mas não acharam ninguém na rede pública – e eu não tinha condições de pagar na rede particular. Hoje em dia, não tenho nenhum acompanhamento médico.
Eu vivo com Asperger. Já consegui uma certa independência, mas tenho muito medo de frustração. Prefiro não tentar para não ter o risco de não conseguir. Apesar disso, tenho facilidade na aprendizagem e absorção dos conteúdos. Não estudo para as provas, apenas presto atenção na aula. Aliás, não estudei para nenhum dos dois ENEM que prestei e nem para a Olimpíada de Matemática, em que ganhei certificado de Menção Honrosa por ter ficado entre os 50 mil melhores do país. Meu problema é na parte social. Na parte acadêmica posso dizer que o Asperger até me ajuda.
Hoje eu aceito a minha síndrome. Estou no sexto semestre de Jornalismo e tenho o sonho de um dia ser um grande comunicador. Geralmente autistas têm dificuldade na parte social, muito por não querer se comunicar. Eu sou o contrário. Eu quero me comunicar, mas não sei como. Tem autistas que são para dentro, eu digo que sou para fora. Não lamento o diagnóstico tardio e nem a falta de preparo da rede pública para acolher, orientar e desenvolver as habilidades de quem tem Asperger. Mas tenho certeza de que se tivesse encontrado esse apoio já teria ido muito mais longe.
Texto escrito por mim, publicado na Revista Horizontes, publicação do Centro Universitário Ritter dos Reis - Jun/2018