Dando sequência à série de textos sobre o processo de finalização de som do filme “Tropa de Elite 2”, hoje falaremos sobre os elementos sonoros e suas relações dramáticas na narrativa do filme .
Os Elementos Sonoros
Em Tropa de Elite 2, seguindo o padrão clássico no cinema, a palavra é utilizada como elemento sonoro principal. A palavra falada, o texto verbal, está presente nos diálogos, na voz over e eventualmente também no walla *. A voz over, a narração em primeira pessoa realizada pela personagem principal, o Capitão Nascimento (Wagner Moura), que guia praticamente toda a história, é um procedimento já bastante explorado pelo cinema nacional. A precisa interpretação e entonação da voz de Wagner Moura rapidamente orienta e envolve o espectador no universo da personagem principal.
O walla, além de ampliar o espaço da imagem e enriquecer a verossimilhança de ambientes sonoros ao longo da narrativa, como no caso do vozerio dos políticos exaltados na sequência da CPI na ALERJ no final do filme, também possuiu uma participação dramática importante. Pode-se notar, por exemplo, nas cenas da rebelião no presídio, em especial quando Beirada (Seu Jorge) invade um pavilhão e caminha para matar seu inimigo Qualé (Chico Mello) que está sentado no final do corredor. Esta sequência começa com o ruído da porta se abrindo, depois ouvimos basicamente os tiros disparados por Beirada, um som agudo constante proveniente da trilha musical, o foley (ruídos das celas, socos, pontapés e personagens caindo no chão) e o walla *. Este último componente começa sutil na sequência. Vai aumentando de intensidade e densidade, instaurando o caos, a partir do momento que Beirada dispara os primeiros tiros e começa a dominar o pavilhão. E, nos últimos momentos da cena, chega a ocupar o primeiro plano de som intensificando a sensação de tensão e sufocamento nos instantes que antecedem a morte de Qualé.
A trilha musical, produzida por Pedro Bromfman e complementada por canções populares como a música “Tropa de Elite” da banda Tihuana, “Zé do Caroço” de Leci Brandão e “O Calibre” dos Paralamas do Sucesso, conduz a maior parte dos climas na história, tornando a música um elemento indispensável para o caráter emocional da obra. Ela é recheada de componentes que combinam ou mesmo são confundidos com efeitos sonoros, como é o caso da frequência aguda com timbre metálico que aparece esporadicamente ao longo da narrativa e constrói a sensação de apreensão e angústia nos momentos que está presente. Ela é perceptível, por exemplo, na sequência em que Nascimento sai do hospital no início do filme – sequência que se repete no final - rumo a uma emboscada e, também, em vários momentos da sequência da rebelião no presídio. Esse som sempre realça a impressão de que algo inesperado pode vir a acontecer, o que prende a atenção do espectador.
O departamento de foley ficou responsável por enriquecer a narrativa elaborando e construindo o som dos mecanismos das armas, passos, roupas, adereços, tapas, socos, chutes, dos movimentos de cada personagem e sua interação com os objetos de cena (portas, papéis, chaves, talheres, louças etc), entre outros. Vale prestar atenção nos primeiros sons do filme, os sons do manuseio de armas e balas muito bem trabalhados. Na construção desses ruídos, por exemplo, houve também a presença de sons de chaves e fechaduras de porta, o que demonstra a escolha de timbres mais agudos, leves e com mais brilho, intensificando a presença da arma de fogo na cena e realçando a habilidade da personagem que a manuseia. Esta qualidade do som não seria encontrada apenas com a gravação dos mecanismos de uma arma real que é mais pesada e possui transientes diferentes, não proporcionando sozinha o teor sonoro dramático desejado para a cena. Outras duas sequências em que o ruído de sala aparece com destaque na trilha sonora são: quando Nascimento e seu filho Rafael (Pedro Van-Held) treinam jiu jitsu juntos, os ruídos dos contatos com o kimono e o tatame aguçam o momento intimista das personagens na cena; quando Nascimento espanca Guaracy (Adriano Garib) durante uma blitz, o foley dos socos e chutes aumentam a força e o peso dramático da cena, qualificando a fúria de Nascimento.
O departamento de efeitos dedicou-se primeiramente aos ambientes, também chamados de BGs (backgrounds). Segundo Eduardo Virmond, esses eram compostos basicamente por um trabalho de “cama”, de base para os outros elementos serem construídos em cima. Estes ambientes são conhecidos sonoramente como “bafo” ou room tone. Esta utilização dos ruídos de ambiente como suporte para os demais componentes da trilha sonora é uma característica notada principalmente em filmes de ação, como “Tropa de Elite 2”, que utilizam muitos ruídos de efeito. Por último, foram acrescentados aos ruídos de ambiente os BG FX (background effects), que são efeitos de ambiente mais pontuais como, por exemplo, sirenes, telefones, passarinhos, grilos e cachorros.
Para ilustrar a participação dramática dos BG FX temos o plano sequência da primeira entrada de Nascimento na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro como subsecretário de segurança pública. Enquanto a personagem principal está na recepção do andar, ouvimos o som de poucos telefones e “bips” tocando, o que ao mesmo tempo sugere a presença de uma outra sala mais movimentada ao lado e justifica o cenário vazio e aparentemente mais tranquilo da recepção. Quando Nascimento adentra caminhando ao longo da próxima sala, os sons dos “bips” e telefones tocando aumentam de intensidade, quantidade e variedade timbristica. Essa dinâmica de construção dos BG FXs, além de aflorar o clima caótico do ambiente da segunda sala, interage com a música e o walla retratando o sentimento confuso de Nascimento na cena.
O próximo passo foi o trabalho com os ruídos de efeito como, por exemplo, os sons dos rádios de comunicação, dos flashes de fotos, dos tiros, helicópteros, carros e motos, dentre outros. Um processo interessante ocorreu com a composição dos ruídos do Caveirão. Segundo Eduardo Virmond, a sequência em que o veículo aparece subindo o morro do bairro permitia um desenho de som mais rebuscado. Assim, o som base utilizado foi o da gravação realizada na frente do estúdio em Curitiba de um possante Galaxie V8. Diferente de todas as outras gravações dos sons de carros e motos do filme, esta foi realizada com o carro parado acelerando. Para isso, foi utilizado a combinação de dois microfones, um no motor e outro no escapamento do Galaxie V8, possibilitando a captação de todo o potencial sonoro da força do automóvel. O microfone do motor captou o som da potência, da aceleração, das correias, da explosão e demais mecanismos de combustão. Já o do escapamento ficou por conta da truculência e “sujeira” do veículo. Outros elementos somados para complementar foram sons de pneu cantando, pneu na terra e elementos do foley como o ranger de latas que simulavam o som da suspensão e dos trancos do “monstro”. Deste modo, o Caveirão se diferenciou dos demais meios de transportes em peso, densidade, carga energética e dramática, fazendo jus à fama do blindado, pesadelo dos traficantes dos morros. Vale conferir o início da sequência citada e notar a diferença entre o som do Caveirão e das camionetes que o acompanha.
Para Eduardo Virmond o processo com os sons dos tiros foi o maior desafio devido à característica da obra. Um estudo sobre as armas que apareciam no filme foi o primeiro passo. O som principal dos tiros foi aproveitado da gravação que já havia sido realizada para o primeiro Tropa e ocorrera desta maneira: primeiramente foi contactado o exército em Curitiba. Depois de toda burocracia com documentos de autorização o estande de tiro foi liberado para a equipe de gravação de som, porém o armamento disponibilizado pelo exército era muito pequeno, o filme necessitava de armas mais pesadas. Entrou-se então em contato com o grupo Tigre, polícia especial anti sequestro do Paraná, que disponibilizou um arsenal maior. Foram dois dias de gravação no estande do exército e um na pedreira, local de treinamento do grupo Tigre. Cerca de oito a dez microfones captavam, em diferentes posições, os tiros de 762, AR15, 12, Ponto 40, 38, 9mm**.
Uma outra variedade de ruídos gravados já no estúdio para compor o som dos tiros foram os sons do impacto de estilingadas de bolinhas de gude em garrafas, paredes, tijolos e em um capô de carro. Por ser produzido de forma mecânica, mais silenciosa, possibilitando uma captação focada no impacto em diferente superfícies, estes áudios acrescentam uma maior intenção de precisão quando utilizados, por exemplo: o som do impacto dos tiros nos carros na sequência do tiroteio entre a turma de Nascimento e a gangue do Russo (Sandro Rocha) que aparece completa na etapa final do filme. O trabalho com os sons dos tiros também está ligado à idéia de transientes. Nota-se, por exemplo, que os tiros “em close”, com a arma e o disparo visivelmente em quadro, possuem um som metálico com transiente muito curto (tiros de Beirada na cena do presídio, por exemplo) e os mais espacializados perdem essa definição, dificultando a percepção da origem dos disparo (sequência do tiroteio na primeira invasão do BOPE na favela, por exemplo).
Com todos esses sons produzidos, gravados, arquivados e manipulados, as concepções sonoras dos tiroteios foram trabalhadas, já em 5.1, com o áudio não só da explosão do tiro e do impacto, mas também do tiro passando, do ricochete, do projétil caindo no chão etc. Segundo Eduardo Virmond, houve um avanço na elaboração e proposta sonora dos tiroteios do primeiro Tropa para o Tropa 2, principalmente na exploração dos ruídos de efeito no espaço offscreen ***.
*O walla, ou vozerio, é composto por uma massa de vozes ou murmúrios no fundo da cena.
** A única arma presente no filme e que não estava disponível nos dias de gravação foi a AK47. Seus tiros foram, substituído pelos sons dos tiros da 762 por possuir um calibre semelhante. Para aumentar a verossimilhança e o efeito dramático, procurou-se explorar mais profundamente os sons dos mecanismos da arma.
*** Fora de quadro, fora da tela.
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