Sinopse: No México, Sicário significa assassino de aluguel. A zona fronteiriça entre os Estados Unidos e o México tornou-se um território sem lei. Kate, uma jovem recruta do FBI, é contratada para ajudar um grupo de intervenção de elite dirigido por um agente do governo na luta contra o tráfico de drogas. Conduzida por um consultor enigmático, a equipa lança-se num périplo clandestino, obrigando Kate a questionar as suas convicções para poder sobreviver.
O texto a seguir pode conter eventuais spoilers.
Enredo simples, não? Eu achei, e talvez haja aqui um consenso: aparenta bastante genericidade trabalhar com um enredo embasado, substancialmente, na guerra contra as drogas. Isso já foi extensivamente utilizado e, de antemão, olhando bem por cima, poucas são as chances de criação e de inovação em cima de tal tema. E, bom… Era nisso que eu acreditava até assistir a Sicario. Em meio a algumas eventuais controvérsias, atestei que fui com muita sede ao pote ao concluir a pouca inventividade do tema de maneira tão categórica. Lembrei-me que se tratava de mais um trabalho de Denis Villeneuve. E é exatamente em cima deste ponto que o jogo vira. É aqui onde nossa atenção deve ser redobrada.
Não é preciso confissão assinada para se atestar o amor de Villeneuve pela tensão. E chegar a essa conclusão não é difícil, tendo em vista alguns títulos por ele dirigidos. Nos últimos seis anos, fomos presenteados com títulos importantes, alguns com histórias tão impactantes quanto bem realizadas – quase todas tendo em seu seio um fino e incisivo suspense –, tais como Incêndios (2009), O Homem Duplicado (2013) e, claro, Os Suspeitos (2013). Sendo assim, não seria lá a maior surpresa do Universo se, na bagagem de seu novo trabalho, viessem juntas fortes doses disso. E Denis não perde tempo em Sicario. Logo na sequência de introdução, já mostra que serenidade não vai ser termo-comum em sua nova realização.
Tal qual a realidade do tráfico de drogas, inicia-se Sicario: irrepreensivelmente cru.
A brutal e controversa trajetória de Kate Macer, imersa no atroz mundo da guerra ao tráfico internacional de drogas, é nada menos, eu diria, que um retrato fiel do que se passa do lado de cá da tela. Na medida em que se desenvolve, cada cena de Sicario soa como um rompante de hostilidade ao maniqueísmo – sustentado, principalmente, por Kate e seu idealismo verdejante, que, por fim, acaba virando pó. Em Sicario, definitivamente, não tem essa de bom ou mau; aqui, nada define os limites da moralidade – com a exclusiva exceção, é claro, dos juízos de valor do próprio espectador. Neste conto cruel, a única bússola moral é a sua.
A forma como as perspectivas adotadas por Villeneuve se estruturam na narrativa da história, apenas dispondo no tabuleiro as peças do jogo, nunca se permitindo tomar partido por um lado ou por outro, são de arrancar sorrisos daqueles que não veem com bons olhos os bobos dualismos morais que ainda batem ponto no meio cinematográfico. Nós acompanhamos boa parte do filme através da ótica de Kate, e, para não deixar a criticidade fugir pelas arestas, Villeneuve acaba tendo de encontrar a base de seu mote argumentativo em meio a esta ótica, de modo intrínseco, o que resulta numa dinâmica interessante dentro da produção, além de um ótimo exercício para quem acompanha a trama, ao tentar identificar o que está sendo dito ali.
Sicario é recheado de bons momentos: lá está a cena inicial, já introduzindo o espectador ao universo austero e dantesco que está por vir; o segmento Welcome to Juarez, seguida da sequência do congestionamento na fronteira – ambas, verdadeiras aulas de construção de tensão, muitíssimo bem compostas –, entre outras situações igualmente bem realizadas. Dentre tantos, um dos pontos mais altos de todo o longa é, sem dúvidas, a forma como Taylor Sheridan brinca com o protagonismo da trama de Sicario; brincadeira essa, cuidadosamente conduzida por Villeneuve. Mas, antes de entrar nos detalhes desse pequeno jogo de protagonismo, me parece conveniente versar sobre a personagem de Emily Blunt, dado o fato de que um número considerável de sujeitos não compreendeu a sua função na história – sobretudo, simbolicamente. Foi a parte que eu achei mais chata e complicadinha do texto inteiro, mas, vamos lá, né.
“O que diabos nós estamos fazendo?!” foi a pergunta feita por Kate Macer, amedrontada ao se deparar com a realidade aturdida de Juarez e, principalmente, com a situação na fronteira; foi esta pergunta, tão bem pensada, que passou a expressar milimetricamente a situação de sua emissora durante quase todo o filme. Dois atos inteiros da trama de Sicario, obedecendo o guião do binarismo narrativo, são perspectivados sob a ótica de Kate Macer, sempre perdida, deslocada em meio a tudo, sem saber com exatidão o que estava fazendo. Desta forma, sua funcionalidade em Sicario chega a soar irônica: enquanto personagem (puramente, sem quaisquer adições), Kate não passa de um pequeno acessório para a missão, sem ter ciência de seu real papel em meio aquilo, mas enquanto ente tramático, dotada de atribuições simbólicas, ela acaba se tornando extremamente funcional.
É uma dinâmica simples: se por um lado Kate está constantemente confusa, por outro, é justamente na inércia desta sua disfunção que se encontra seu papel simbólico na trama. Em grande parte, as incursões argumentativas quase cirúrgicas sobre a falta de escrúpulos da Guerra às Drogas, emanam das constantes situações as quais Kate Macer é submetida. E é aí que reside a força e importância de seu papel na composição de Sicario. Portanto, cabe aqui uma breve compreensão: não é que, isoladamente, o plot de Kate Macer seja deficiente de força apenas por sê-lo, assim, de modo cabal; muito pelo contrário: sua fraqueza é apenas aparente, já que reside ali um propósito medular para a história.
Tendo entendido quem fora, afinal, Kate Macer no balaio de gato de Sicario, chegamos, finalmente, ao grande jogo de protagonismos a que me referi anteriormente. Não há muitos aspectos que dificultem a assimilação de como isso acontece, mas, mesmo assim, vamos por partes. Milimetricamente pensado, o roteiro de Sicario introduz sua personagem principal: Kate Macer, e, norteada pelas situações vividas por ela, a trama do filme se desenvolve linearmente. Como mencionado anteriormente, nós acompanhamos dois atos de Sicario (quase inteiramente) pelo ponto de vista de Kate, o que nos leva a, naturalmente, erigir sua personagem ao status de protagonista. Entretanto, uma surpresa estava ali, escondidinha, nas entranhas de Sicario: a missão se tratava, na verdade, de um plano de execução de um grande chefe de cartel mexicano, Fausto Alarcon. Contudo, externo ao conhecimento do espectador, o suposto consultor Alejandro (Benicio Del Toro) possuía sombrias pendências com Fausto (Julio Cedillo), dando ao personagem de Del Toro, já no terceiro ato do filme, uma importância crucial à história. E a inversão na trama ocorre pautada nisso, levando o protagonismo de Kate a ser substituído pelo de Alejandro, dado o fato de que é ele o grande executor de todo o plano que vinha sendo arquitetado até ali; grosso modo, é ele que vai lá na casa do chefão descer o sarrafo e dar cabo de todo mundo. Toda essa substituição se concluiu num plot twist tão tenro, tão inconvencional, que, não à toa, é pouco lembrado como tal. Na humilde opinião deste pouco versado autor que vos fala, este foi um dos melhores plots twists de 2015, justamente pelas escolhas pouco convencionais para sua realização – algo arriscado, sim (não à toa as reclamações e interpretações falhas a respeito do arco de Kate Macer), mas ao mesmo tempo um baita exercício de condução.
Falar de Sicario e esquecer de ressaltar o trabalho brilhante de Roger Deakins na fotografia do filme é um crime inafiançável. Auxiliando Villeneuve na composição de seus enquadramentos e planos, Deakins realiza tomadas aéreas espetaculares – o filme é recheado de tomadas aéreas e de grandes planos gerais –, além de tantos outros planos igualmente lindos. Se me pedissem para escolher apenas uma entre todas as composições do filme, eu escolheria aquela cena onde os soldados estão, finalmente, seguindo para a execução da missão. A fotografia daquela cena, com os soldados em contraluz em meio ao lusco-fusco, caminhando e submergindo na escuridão, chega a ser um absurdo de tão bonita. Gosto dela tanto por sua estética quanto por seu simbolismo, e por isso a escolheria. Temos aqui, enfim, mais um trabalho nada menos que brilhante do gênio Roger Deakins. E um pecado talvez tão imperdoável quanto esquecer de Deakins, seria esquecer da trilha sonora de Jóhann Jóhannsson, que fora esculpida aos milímetros para compor o filme. Ela obedece religiosamente o tom proposto pelo filme, de modo que Sicario indiscutivelmente não seria Sicario, sem ela. Aqui não tem nada de melodias bonitinhas, ou para se ouvir em momentos de inspiração. Jóhannsson não fez melodias, mas sim “suspenses tocados”. É de agoniar mesmo, tal qual o filme.
No tocante das atuações, apenas elogios. Como num triângulo de extremos bem definidos, temos uma Emily Blunt perfeita no papel da idealista, destemida e igualmente perdida Kate Macer; um Josh Brolin e seu Matt Graver como que transfigurado na imagem e semelhança dos EUA: desleixado, debochado e pouco se importando com as medidas que deve tomar para solver seus problemas – doendo a quem doer; e um Benicio del Toro de pouquíssimas palavras, frio, soturno e amedrontador, numa das melhores atuações de sua carreira, sem dúvidas. É um trio e tanto, num desempenho de extremo esmero, de onde não tiro e nem acrescento absolutamente nada.
Eu, contudo, tive um peculiar incômodo com Sicario. Ele reside no fato de os bandidos serem facilmente identificáveis durante a cena da fronteira. Eu realmente não consegui achar a realização desse ponto em particular, interessante. Penso se não seria mais provocativo de sua parte exercitar melhor este ponto, não tornando os opositores tão óbvios quanto foram. Durante essa sequência, ficou muito na cara o maneio da direção em facilitar o trabalho do espectador. Num dado momento, quando a equipe para na divisa, Alejandro logo se espreita e começa a buscar por possíveis inimigos; é num desses momentos que a câmera (os olhos do observador) sai da janela traseira do carro e passeia para uma logo ao lado, dando um close óbvio no Opala vermelho de passagem – com aquele cidadão careca, de cabeça recostada no banco, pouco-boa-pinta e coberto de tatuagens até o coco. Vai me dizer que você nem mesmo suspeitou, leitor?
Certo, Villeneuve, eu entendo que você queria que a gente soubesse que tinha caroço naquele angu, e que ele ia voar pra todo lado, mas, vai… Não precisava ser assim.
Numa outra rápida fala, devo salientar um aspecto bastante instigante sobre a qual Sicario versa: a dessensibilização da população com a violência e as atrocidades ocorridas não somente em Juaréz, mas em todo o México – estendendo-se, facilmente, à todo e qualquer ambiente onde o tráfico e a guerra às drogas se fazem presentes. Três momentos-chave durante o filme expõem bem essa característica: temos, primeiramente, a chegada em Juarez, quando é possível ver quatro corpos mutilados e pendurados num elevado da cidade, notando-se alguns populares nos arredores observando o trabalho da polícia local, como se fosse a coisa mais natural do mundo; num segundo momento, logo após a troca de tiros na fronteira, o corpo de um policial corrupto se encontra abatido no chão e, mesmo após o banho de sangue presenciado ao vivo, as pessoas continuam ali, impassivas, apenas observando o que sobrou da bagunça; o último e talvez mais emblemático momento, se encontra no fim da projeção, quando crianças jogam futebol num campo de terra e, de repente, ouvem tiros não tão longe dali; brota um enorme silêncio, os pais e as crianças olham o horizonte e, como se nada tivesse acontecido, voltam a jogar. As sensações de anestesia e conformidade, causadas pela condição de quem vive rodeado pela violência, chegam a assustar.
Denis Villeneuve é, atualmente, dono de um dos mais suntuosos currículos do meio cinematográfico – desses de fazer inveja, mesmo. Gosto de dizer que, se o Século 21 fosse um agente consciente e, porventura, também amante de Cinema, como nós, ficaria devendo à Denis alguns longos agradecimentos por suas contribuições. E, embora brincadeira, não gosto de achar que isso seja exagero de minha parte. O cara é realmente muito bom no que faz. E depois deste filme, é bem provável que quaisquer dúvidas a seu respeito – no tocante de sua qualidade enquanto cineasta – se esgotem. Não tem jeito: Denis Villeneuve assume lugar de destaque entre seus contemporâneos. Lugar este de onde ninguém poderá tirá-lo.
Numa sucinta frase, por fim, gosto de ter Sicario dessa forma: não menos que um desgastante exercício de realidade.
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Esse texto foi publicado originalmente no blog CINECOMTEXTO.
Por Ericson Miguel.
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