Uma pequena abordagem da nossa vida como ficção.
- Boy Reading an Adventure Story, de Norman Rockwell*
Venho lendo o livro Ficções que Curam, de James Hillman, psicólogo de orientação analítica-arquetípica, que segue o trabalho de Jung buscando um caminho mais imaginal para suas formulações. Como sempre, o trabalho do escritor é fantástico, perpassando domínios de teoria, poesia, prática terapêutica, religiosidade e mesmo literatura. Sua obra é abrangente e engloba tudo no sentido da alma, palavra que denota aquilo que possui sentido e significado em nossas vidas. Esse sentido e significado remeteriam, em última consequência, aos padrões arquetípicos que constelam nossas diferentes experiências e entendimentos intra-existenciais.
Dentro desse contexto, Hillman articula o conceito de alma com o de ficção, abrindo diante do leitor uma compreensão nova para o estudo de caso e para a ideia de nexo histórico-ontológico a nível pessoal. Inicialmente, ele trata da história de caso – o estudo de caso, como chamamos – como um inédito gênero literário. O estudo de caso ou a história de caso é um texto onde o terapeuta expõe o caso com que lida, disponibilizando uma história do sujeito e o que lhe foi observável, de modo a levantar hipóteses clínicas sobre o quadro exposto. É uma ferramenta recorrente e muito útil, especialmente aos estudantes da disciplina, que poderão se debruçar sobre as linhas futuramente e usá-las como fonte de conhecimento.
Contudo, dentro da psicologia há sempre uma dificuldade intransponível: a objetividade e o acesso ao objeto de estudo. Quando se opera no terreno do inconsciente, do sintoma, do que obnubila a consciência e das representações internas que precisam ser exteriorizadas pelo sujeito dentro da linguagem e depois estruturadas pelo terapeuta num estudo coerente, perde-se qualquer tipo de domínio das condições que circundam o objeto de estudo. Para montar um estudo de caso ou mesmo para analisar um paciente, dependemos de um universo particular dele ou daquilo que costumam chamar de subjetividade. Toda fala é carregada de carga simbólica, de associações particulares inconscientes, de complexos atuantes nas profundezas e até de distorções inocentes a partir de uma maneira pessoal subjacente no próprio fenômeno de intencionalidade da consciência.
Lena Och Riddaren Dansa, de John Bauer
Assim, o que é que colocamos num estudo de caso? Quando ouvimos atentamente a história do paciente e dali avançamos, por ter bebido do poço de Mimir, às nossas hipóteses, que tipo de caminho nós percorremos? Hillman estabelece essa jornada dentro da ficção. Como um gênero literário, o estudo de caso seria ficção. Mas, ora, que tipo de estudo sério em termos de saúde partiria ou teria como meta uma ficção? O autor indica que Freud já havia percebido que, quando anotava o relato de seus pacientes, o que anotava não era uma verdade literal, mas que o que capturava corria mais no sentido de fantasias de eventos que existiam como se tivessem acontecido. Indo ainda mais longe, toda essa história de caso seria estruturada como ficção ao ser um tipo de relato inventado de um personagem central numa história narrativa. Da mesma forma, parte do terapeuta, com sua própria ficção ou maneira de ver o mundo, a importância dada a cada situação exposta. Isso tudo se dá pela existência de uma trama.
O uso que se faz da palavra “trama” no livro é esclarecedor. A trama seria o que colocaria alma numa história, indo além da mera causalidade. Para que se faça ficção, precisa-se de uma trama. Se a narrativa for “o marido morreu e então sua mulher morreu”, o que temos é uma história, porém, se a narrativa for “o marido morreu e então sua mulher morreu de desgosto”, teremos uma trama. A trama dá sentido e profundidade à narrativa. É algo que liga um evento a outro, dando sentido aos fatos que, sem isso, pareceriam vazios para nossa psique. Como humanos, vivemos dentro da trama e buscamos, de modo ou outro, enxergar uma trama dentro da sucessão temporal. Esse comportamento faria parte do nosso instinto mítico, pois a trama remete ao mito e este aos arquétipos.
Quando o paciente senta-se e discorre sobre sua biografia, ele não é biográfico de fato, pois seleciona conscientemente ou sem nem perceber, pelo princípio da associação livre, o material que introduzirá na linguagem expressa para o profissional. Portanto, o que ele traz é uma trama e não uma biografia. O que o paciente diz não será investigado factualmente, e habitualmente o paciente não será questionado sobre a veracidade das coisas que afirma, mesmo que soem pouco críveis. O paciente, fazendo a seleção do que contará ou não, apresenta a trama em que ele está imerso: a própria história de vida. Não é raro a pessoa contar algo que não é verídico, mas acreditar naquilo, sendo aquele fato imaginário um importante capítulo da sua trama, dando sentido a todo um conjunto de acontecimentos que orbitam aquele fato. Portanto, a narrativa do paciente passa muito longe de ser um relato exato ou uma anotação científica de uma série de eventos verificáveis que ocorrem dentro da sucessão causal. Antes, o relato do paciente é um conglomerado de articulações simbólicas, míticas, que dão sentido interno a uma trama; uma história viva e animada pela profundidade da alma.
Hillman chama atenção para o fato de os pacientes usarem suas histórias de formas diferentes. Algumas pessoas as contarão como forma de passar o tempo com entretenimento ou como forma de simplesmente enganar; outras agirão como repórteres e algumas serão advogadas de acusação que elaboram um tipo de queixa. Há quantos modos de se contar uma história? Quantos não são os gêneros literários que abundam nas estantes das bibliotecas? Por isso, é parte da sensibilidade de um terapeuta olhar para o modo como se conta uma história e não apenas para seu conteúdo. Muitas vezes, toda a história poderá ser metafórica, onde, por exemplo, cada detalhe visto num dia – a poça de água, a árvore florida, o olhar de reprovação da mãe ao sair de casa – terá um significado simbólico para as figuras da psique do paciente.
Ilustração de Arthur Rackham para o conto de fadas “O Velho Sultão”
Chegamos a um ponto importante. Dentro dessa abordagem arquetípica de psicologia, nós vivemos imersos em nossas próprias narrativas. Damos sentido à vida através de estruturas que remetem a padrões míticos e arquetípicos, mesmo que sem querer. Estando incluído nessa estrutura, o que se leva para a terapia também será estruturado conforme essa articulação. A ideia de uma consciência pura, cristalina, que transitasse a partir de uma intencionalidade que não estivesse influenciada por fatores inconscientes – como os complexos, por exemplo – seria impossível uma vez que o inconsciente estaria agindo por trás da nossa própria intencionalidade da consciência, organizando a experiência segundo referências arquetípicas. Porém, esse distanciamento dos princípios fenomenológicos não caberia aqui. O mais importante estaria em observar como nossas vidas podem ser moldadas pelos princípios da ficção em que nos envolvemos. Devo lembrar que ficção, aqui, não possui um sentido pejorativo.
Seguindo na direção da ficção que tantas vezes dá sentido às nossas vidas, Hillman fala da possibilidade de que uma quebra no motivo temático pode ocasionar na falta de sentido. Perdendo o motivo temático ou a coesão da trama, a pessoa não conseguiria mais juntar os eventos ou lhes dar um sentido. Então, torna-se tarefa para ele procurar uma nova história ou reconectar-se com sua velha história. Esses podem ser momentos de grande mudança, criando um novo contexto de articulação simbólica, provendo uma nova energia para viver e descobrir o mundo de forma nova. Caso essa religação significativa a uma nova ou velha história não seja feita, permanecerá a falta de sentido, a sensação de confusão ou de estar perdido, e assim começam muitos quadros depressivos.
Todo esse material exposto por James Hillman possibilitam, ainda, uma reflexão sobre nós mesmos como humanos. Em que tipo de ficção a gente se coloca? Qual é nossa narrativa? De alguma forma sou eu o protagonista dela ou vivo como um coadjuvante passivo, um NPC à margem de outras histórias principais? E as ficções prejudiciais? Muitas pessoas, sem perceber, adentram em narrativas de sofrimento, martírio, culpa ou abandono. A existência passa a fazer sentido dentro de um quadro trágico onde tudo só existe em modo de declínio. Por mais que sofra, o sujeito não consegue olhar além dessa narrativa, pois vive no papel desse personagem e adotou seu destino imaginado.
O opus terapêutico, portanto, pode residir justamente no ajustamento da ficção, oferecendo uma ficção curativa. Por vezes, o que se dá na terapia é uma batalha de ficções, com o paciente oferecendo uma versão de sua história e o terapeuta ofertando outra em contrapartida. A ficção pode ser curativa; ela pode oferecer sentido, pois é o modo como nos vemos na própria história, é o conceito que temos de si e do mundo que nos rodeia. Uma vez internalizada, ela agirá no modo como vivemos os acontecimentos e como tomamos nossas decisões. É esse trabalho quase literário e ao mesmo tempo real, simbólico e imaginário de (re) escrever a própria história que oferece uma operação delicada sobre a forma de se ver, de se encontrar e de participar do mundo através da própria existência. É através dele que, mesmo sem percebermos, damos sentido à nossa presença no mundo em meio aos outros, presença que, de caso contrário, sofreria de agonizante falta de sentido.
Referências
HILLMAN, James. Ficções que curam: psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler. Tradução de Gustavo Barcellos. São Paulo: Verus, 2010.
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Esse é um texto sobre psicologia. Também escrevi sobre o tema em outras ocasiões:
A importância das estórias e do mito | E, às vezes, nos esquecemos no passado | O que vemos lá fora | Talassofobia – O Medo do Oceano
Muito interessante essa resenha, me deu vontade de ler o livro. Obrigada por compartilhar.
Obrigado, @aliny! :)
Que post incrível! Muito bom poder presenciar um conteúdo aqui dessa forma. Caminho por referencias diferentes, mas que dialogam entre si. Tem uma influencia de J. Lacan nos registros do real, simbólico e imaginário, desenvolvidos no século XX, após desenvolvimentos prévios de referencias diferentes, como Freud, Jung, Clérambault e outros. Adler é citado em minhas referencias, mas não conheço a obra em si. Pensadores incríveis, pena que pouco aproveitados nos dias de hoje. Nesse mundo de padrões, moral, com pouca margem para imaginação, arte e formas de existência sociais, fadado ao individualismo. O positivismo nos trouxe até aqui, e se torna difícil trabalhar além dele, já que o pensar por reflexão, deu lugar ao pensar pela imagem. O imaginário e o real, estão quase no mesmo plano, e isso é extremamente perigoso, nos leva a economia psíquica que nos encontramos como um todo. E não tem trabalho mais bonito em minha opinião, do que ajudar aquele sujeito resgatar a fantasia/fantasma, e conseguir dar lugar a sua própria ficção, ao seu ser no mundo, no mundo social. Parabéns pelo texto!
Muito obrigado! Fico contente por seu comentário, sempre muito bem construído. Eu estudei um pouco de Lacan e, puxando da memória assim, acabo pensando na importância do significar e, num nível mais extremo, do delírio como cura daquele que 'vaga' na estrutura psicótica e passa pelo acontecimento da injunção. O modo como se estrutura o desejo também tem a ver com essa busca que menciono no texto.
Eu acho o Lacan muito interessante, mas tive que parar de estudá-lo, pois não tinha como conciliar o estudo da abordagem que escolhi com outra que é tão vasta (haja tempo para estudar corretamente todos aqueles seminários!).
Novamente, obrigado pela leitura e pelo comentário. Fico contente em saber que textos dessa natureza também podem ter uma boa recepção aqui! :)
Eu gosto muito. Sigo atualmente em estudo, a escola francesa de psicanálise com Czemark, Melman, Tyszler, e outros, invariavelmente tenho que retornar a esses autores para entender alguns conceitos, e sempre levo dúvida a professores, é bem difícil na minha opinião. Umas formulas muito diferentes, ta doido. kkkk.
Ainda avançaram mais nos dias de hoje. Mesmo assim meu autor favorito é S. Freud. Bom saber mais gente gosta desses assuntos por aqui! Valeu!
Eu não cheguei tão longe na psicanálise por aquele motivo que falei, mas imagino que as coisas andam já bastante adiantadas em relação às épocas antigas.
Concordo com você que seja bastante difícil. O próprio Lacan existe bastante por causa de usa linguagem e da utilização de conceitos de outros campos de conhecimento (matemática, por exemplo).
Já vi aproximações de Jung e Lacan em Andrew Samuels, ele fala sobre o simbólico ser ligado ao conceito de inconsciente coletivo, o imaginário ao de inconsciente pessoal e o Real como associado à noção de inconsciente psicóide.
É muito interessante como, apesar de diferentes linguagens, transitamos num mesmo mundo misterioso.
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