Uma noite de outono na floresta

in #pt7 years ago (edited)

Um relato sobre uma noite à luz da fogueira na floresta.
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Era 30 de abril e decidira subir o morro para fazer uma fogueira e, talvez, dormir na floresta. Estava esperando um dia mais frio, mas esse ano o inverno será muito fraco aparentemente, de maneira que decidi não esperar. Também era uma data especial, na qual algumas culturas celebravam o dia dos mortos em outros tempos. Sim, como as estações no hemisfério sul são inversas às do norte, quer dizer que, no nosso calendário sazonal, essa data corresponderia ao festival celta do samhain, que deu origem ao moderno halloween. Sempre gostei de fazer algo mais introspectivo nessas datas, pois, assim como a Páscoa encarna os símbolos da primavera e o Natal os do inverno, acreditava que havia algo especial do ciclo natural nesses dias.

A celebração do samhain (samaín na Galiza),é uma antiga festividade celta que trata do decair dos dias e do crescimento das noites conforme avança o inverno. Seria uma data em que o véu entre esse e o outro mundo estaria mais fino, permitindo que as duas realidades se misturassem. Da mesma forma, seria possível aos antepassados, os mortos, entrarem em contato conosco. Há muitos estudos sobre essas celebrações, mas só trago o superficial aqui para contextualizar o relato. Era de costume pessoal fazer determinadas coisas em determinadas datas conforme o ritmo da natureza.

Nos outros anos, havia ido com alguns amigos que também gostam do estudo dos antigos mitos até a beira do rio em um lugar ermo para fazer fogueira, comer pinhões, fazer a queimada galega e tomar vinho. Lembro que fazia bastante frio nos outros anos, íamos de sobretudo e testemunhávamos as brumas tomarem conta do rio. Dessa vez, foi diferente... Nenhum dos meus amigos interessados em tais temas se fez presente e o dia estava anormalmente quente para a época.

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Fotos de 2015, quando nos reunimos à beira do rio para fazer a queimada galega (a bebida que está pegando fogo na foto) e fogueira

Primeiramente, um amigo somente se dispôs a ir. Encontramo-nos em minha casa e seguimos caminhando até o morro, saindo daqui às 16h30min e chegando lá no topo, após uma cansativa subida, às 18h. O plano era sair antes, mas nos enrolamos um pouco. Levávamos carne, pinhão, água e alguns mantimentos. Havia apenas uma meia-hora de luz quando chegamos à trilha. Colocamo-nos à procura de um lugar apropriado para estabelecermos "acampamento". Com pouca caminhada pela mata, encontramos um lugar muito apropriado onde alguém havia derrubado umas árvores e empilhado madeira por várias partes. Não era um terreno fechado e nem nada assim, então optamos por aquele local e por usar parte daquelas madeiras. No entanto, eu dei a sugestão de seguirmos a trilha para "vermos onde ela ia dar". O resultado foi que nos perdemos e já estava escuro. Demoramos cerca de meia-hora em mato fechado para reencontrar a trilha principal.

Tendo nos localizado novamente, já às 19h, começamos a nossa fogueira. Às 19h30min eu deveria ir até o topo do morro, naquele breu total – pois não há fonte alguma de luz senão a da lua e as distantes luzes da cidade que cintilavam no horizonte – para encontrar um amigo que possivelmente se juntaria a nós. Caminhei até lá e deixei meu machado em um lugar da trilha, pois não queria correr o perigo de encontrar alguém, às vezes uma viatura fazendo ronda, e ter de explicar o motivo de andar empunhando um machado sozinho naquele breu numa segunda feira à noite. Subi um pequeno monte perto do mirante no topo do morro e por lá fiquei esperando meu amigo e pensando nas amarguras da vida. Esperei até passar das 20h e voltei, pois ele não pôde se fazer presente (eu estava sem meu chip de celular para comunicação, o que deixa as coisas até mais "divertidas").

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É assim a vista que se tem da cidade lá de cima do morro. As luzes da cidade, dali, lembram as brasas que sobrevivem ao fim da fogueira

Voltando à fogueira, ajudei meu amigo a revivê-la e começamos a espetar as carnes. Como não quis carregar grelha ou algo assim até lá, peguei galhos verdes e retirei sua casca externa com ajuda do meu facão, fazendo com este também uma ponta nos galhos. Espetamos pedaços de carne de porco e os colocamos em forquilhas sobre a fogueira. Também lançamos alguns pinhões nas brasas da fogueira para que assassem.

Enquanto fazíamos essas atividades, ouvimos um barulho inesperado no mato. Lá longe, na escuridão total entre as árvores, avistamos a luz de uma lanterna. Nosso sangue congelou. Não estávamos esperando mais ninguém e, mesmo que estivéssemos, seria muito difícil que um de nossos amigos encontrasse nossa localização, pois são várias trilhas e bifurcações que existem ali. Então, gritei "Op!" (uma forma ainda mais abreviada para "opa" haha) e a pessoa respondeu "Cheeki Breeki!". Soube que era um dos nossos. Para quem não sabe, cheeki breeki é um termo em russo que é muito utilizado no jogo S.T.A.L.K.E.R.. Como há certa carga cômica envolvendo o termo, o jogo e a fama dos eslavos, ele acabou virando um meme interno entre eu e meus amigos. Quem chegava ali era outro amigo meu que não havia dado certeza, mas que, pelo jeito, informara-se com os demais e decidiu comparecer, trazendo seu vinho.

Então ficamos ali os três. Eu não podia beber por estar tomando antibiótico, então os dois beberam. Eu me limitava a conversar, tomar uns goles de água e fumar alguns cigarros ou paieros. Aos poucos íamos comendo os pinhões que estavam bons, apesar de alguns terem tostado, e íamos verificando a carne. A carne logo estava boa e decidimos comê-la. Apesar de um pouco salgada, ela estava bem apetitosa, pois eu havia temperado com uma mistura que havia feito.

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O amigo que chegara por último estava com internet no celular e viu que outro amigo nosso, um cristão ortodoxo que morava perto dali, estava interessado em subir o morro para se juntar a nós. Ficou combinado de que ele subiria até lá e alguém o buscaria lá pelas 23h15min. Um dos meus amigos o buscou e logo ele se juntara a nós na fogueira para comer mais um pouco, tomar vinho e passar as horas conversando.

As conversas seguiam animadas, falando sobre os últimos filmes, sobre jogos e coisas da vida. Um acabou dormindo. Eu havia me recolhido no meu saco de dormir, permanecendo deitado enquanto conversava e contemplava o teto da floresta com suas árvores que contrastavam com o forte clarão da lua cheia. Não fazia o frio que tanto queria, mas era uma noite bonita. E ali ficamos até perto das quatro da manhã, quando todos decidiram descer. Pensei em dormir ali, mas sabia que dormiria poucas horas e teria que voltar de qualquer forma, então decidi voltar e dormir no conforto da minha cama.

Saímos de lá, vagando na escuridão e descemos a longa estrada sem iluminação, cercada por pinheiros e eucaliptos, até chegar às casas e, finalmente, na cidade. Não fora bem o que eu esperava para essa ocasião, que era para ser uma noite fria e diferente, mas foi agradável da mesma forma. É sempre uma ocasião relevante poder estar junto à natureza e passar as horas acompanhando seus movimentos, o anoitecer, o esfriar da madrugada e permanecer acolhido por sua escuridão noturna.
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Eu tambem sou do interior entao faco a mesma coisa que voce... ja fui varias noites de outono e inverno em uma antiga pedreira deativada aqui da cidade, onde faziamos uma fogueira, assavamos algo, bebiamos vinho e olhavamos para a cidade e para as estrelas... sentado em volta da fogueira contando historias e tocando violao.... nao ha nada melhor que isso. Parabens pela sua postagem... me fez relembrar de tempos muito bons!


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Muito bom! Mora onde?
Não há coisa como essa. Privilégios da vida no interior! Para nós, só falta o violão hahaha, mas a diversão está sempre presente.
Muito obrigado pela leitura e pelo comentário!

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Muito bom, meu caro! Sempre prazeroso ler seus relatos, é uma forma de me sentir mais próximo, já que mesmo sendo vizinhos de cidade temos dificuldade em se organizar para marcar alguma aventura juntos. Fico sempre encantado com essa ritualística sincera e análoga que vocês trazem nestas aventuras naturais. Também estou nessa expectativa do frio aqui que não vem se realizando, é uma pena! O frio do ano passado já havia sido fraco, esperava que esse fosse mais severo, mas ainda é tempo, vamos ficar de olho.
As noites quentes e abafadas na mata também tem seu valor especial, mas nossa alma do antigo continente clama pelo gelo.
Abraço!

Obrigado!
Desse inverno não passa, nesse inverno (ou seja, metade fria do ano), vamos nos aventurar de alguma forma!
Sábias suas últimas palavras... Parece que no frio há como nós sermos mais nós mesmos de alguma forma estranha. Todas as estações têm suas riquezas, mas parece que, mesmo aqui, o balanço pende demais pro calor, o nosso equilíbrio precisaria ser um pouquinho mais frio hahaha
Abraço!

simplesmente o contato com a noite, natureza e amigos.... são momentos inesquecíveis!


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Sem dúvidas!
Obrigado pela leitura e pelo comentário!

Esses rolês de mato sempre rendem boas histórias. Aqui na minha cidade sempre tem esse tipo de rolê. Sempre que posso eu tbm participo.


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Aham. Nunca sabemos o que vai acontecer. Sempre rende alguma história hahahaha
Obrigado pela leitura e comentário!

Parabéns, seu post foi selecionado pelo projeto Brazilian Power, cuja meta é incentivar a criação de mais conteúdo de qualidade, conectando a comunidade brasileira e melhorando as recompensas no Steemit. Obrigado!

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Nossa, bom demais ler esse relato!!! Me lembrou das inúmeras vezes que estava na estrada e saia pro meio do mato encontrar um lugar pra acampar, fazer uma fogueira e aproveitar esse contato com a natureza. Ou as infindáveis noites no templo onde ficava ao redor do fogo com os amigos, rindo e contando histórias.
A forma como você escreve realmente nos transporta para o lugar com você, consegui visualizar as brumas no rio e o teto das arvores. É bom demais!
Te falar que compartilho desse sentimento com voce e com o @thomashblum, meu sangue ancestral se esquenta quando está frio... hahaha
Vou me programar pra descer ai pro lado de vcs no meio do inverno, quero participar de uma aventura na mata com vocês!
Gratidão por compartilhar! Forte abraço!

Salve!
Muito obrigado pela leitura e pelo comentário!
Então, eu li hoje mesmo seu último relato e aquela parte da barraca na chuva e no vento eu achei bastante tensa. Você passou por boas aventuras! Hahhahaha
Bom ver que também compartilha desse sentimento!
Seria um prazer tê-lo aqui conosco.
Eu e o Thomas moramos em cidades vizinhas (uns 80km de distância, acho) e temos mais amigos que apreciam essas atividades. A gente sempre tenta marcar algo assim e, por vários motivos, acaba nunca saindo. Mas seria legal mesmo a gente fazer algo do gênero!
Abraço!