Os Abismos Humanos e o Politicamente Correto

in #pt6 years ago (edited)
Lembro-me de que soltávamos os papa-capins muito novos que capturávamos. Aqueles ainda pardos. Os únicos que caíam no nosso alçapão. Nos queríamos só os que já começavam a ganhar a coloração dos machos adultos, pois as fêmeas não cantam e são sempre pardas. Foi quando tive aquela ideia de pegar um dos que íamos descartar e lançá-lo bem alto e longe. Não vi nada de mais nisso, pois eram seres que voam. De fato, pareceu que ele nem teve muita dificuldade de recobrar o controle e voar para a mata.

Lembro-me também de quando numa pescaria, ao pegar um lambari muito pequeno, em vez de colocá-lo de volta na água, resolvi arremessá-lo o mais longe que podia em direção ao meio do lago. Não vi problema nisso, a água o amorteceria e ele era adaptado a ela.

E, por último, lembro-me de quando, ao ver um cão passando na rua, eu punha a mão no chão, e só isso já era suficiente para ver ele sair disparado com medo de levar uma pedrada.

Hoje, pensando nesses fatos, vejo muita estupidez. O pobre passarinho, uma criatura tão delicada sendo jogada para o ar como uma coisa, sofrendo aquela imensa aceleração e saindo da mão como uma pedra. Certamente, pode ter se machucado. E o peixe, puxado violentamente para um meio estranho e, depois, sendo lançado com toda aquela velocidade. Pode ter perdido uma nadadeira ou até um olho.

E o pobre cão? O coitado perdera parte do seu agradável e alegre passeio pelo bairro.

Hoje sei que todas essas ações de fato tinham uma única motivação, não percebida na época. Era o desejo de sentir poder sobre outros seres. Desejo só possível de ser exercido devido a falta de empatia e à ignorância.

Mas, é claro que não se podia esperar muita empatia pelos animais em crianças que estavam capturando seres para passarem anos presos numa gaiola (já pesou o que é passar estressantes e entediantes tardes inteiras numa gaiola), ou em quem se diverte puxando criaturas aquáticas com um anzol pontiagudo enfiado na boca (é claro que o peixe deve sentir uma dor terrível).

Lembrando-me desses fatos, tentei pensar no que seria, no mundo dos humanos adultos, o equivalente àquela mão de criança. E o que eu encontrei foram palavras.

Palavras… É com elas que os humanos podem ser lançados como coisas para dentro dos seus próprios abismos. É com elas que se pode ameaçar dar pedradas nas partes mais vulneráveis do ser. E tudo isso sem culpa nenhuma, pois eles deveriam estar muito bem adaptados aos seus abismos. E, também, por que não há nenhuma pedra real.

Assim, a falta de empatia, a ignorância e a vontade de poder sobre os outros nos tornam incapazes de perceber o quão brutas e ameaçadoras podem ser as palavras.