Numa versão alternativa e distorcida da realidade atual, o presidente e ator de Hollywood Robert Redford promoveu duas leis fulcrais para a narrativa de ‘Watchmen’, a sequela da banda desenhada homónima escrita por Alan Moore e ilustrada por Dave Gibbons: uma lei de reparação que pretende indemnizar os cidadãos com elementos na sua árvore genealógica que, no passado, foram vítimas de segregação ou violência racial, e uma lei que restringe o uso de armas de fogo, inclusivamente para os agentes da lei. Recorde-se que propostas semelhantes pintam as manchetes da atualidade nos Estados Unidos da América, contribuindo para a acentuação de uma cada vez mais clara divisão entre conservadores e liberais.
Apesar da relativa razoabilidade destas duas leis, abriu-se caminho para o surgimento da Seventh Kalvary, uma organização supremacista que usa “máscaras Rorschach” como adereço, a fazer lembrar o *modus operandi *do Ku Klux Klan. A brutalidade deste grupo é tal que, após um atentado coordenado e sangrento contra as autoridades da cidade de Tulsa, Oklahoma, foi criada uma lei que obriga os polícias a usar máscaras durante as horas de serviço de forma a ocultarem a sua identidade.
Provavelmente, o nome “Seventh Kalvary” é uma referência a um regimento do exército norte-americano, com o mesmo nome, formado em 1866, que tinha como objetivo cumprir os desígnios dos colonialistas cujo destino divino — nas suas mentes — era espalhar o modo de vida do “homem branco”, ideia que, como vários historiadores apontam, custou a vida a comunidades inteiras de nativo-americanos, especialmente das tribos Sioux e Cheyenne.
Quanto ao elo com Rorschach, a personagem principal da BD original, bastará referir que este profere várias linhas que, avaliadas com os olhos de hoje, se assemelham aos argumentos dos movimentos “alt-right”, disfarçados pela ladainha de que se está a fugir ao politicamente correto. Na série, as conjeturas desta espécie de anti-herói foram deturpadas e amplificadas pelo grupo de ódio. Se bem que o assunto não seja abordado, isto pode dever-se ao facto de, perto do fim da BD, Rorschach ter enviado o seu diário para o ‘News Frontiersman’, um jornal conservador de direita.
No entanto, o píncaro desta montanha de referências ao racismo é a primeira cena do primeiro episódio, uma reconstituição do “Massacre de Tulsa” de 1921, um ataque supremacista a uma prolífera comunidade negra conhecido em alguns meios como “o pior incidente de violência racial” na História do país — chegou ao ponto de aviões largarem bombas sobre os edifícios daquela que era apelidada de “Black Wall Street”. Esta primeira cena gerou estupefação em alguns espectadores, quando, como foi destacado por várias publicações de relevo, perceberam que o ataque em questão é verídico.
Esta distopia regada de alusões a eventos reais, onde as pessoas andam mascaradas, pertencentes a fações distintas e opostas por via das circunstâncias, mais parece uma alegoria da vida *facebookiana *do presente — as máscaras amarelas dos polícias fazem lembrar ligeiramente um emoji. O anonimato destas caricaturas permite que as suas atividades se possam extremar, polarizar, imperando uma filosofia do “nós contra vocês”. Alguém que não está exposto à identificação pessoal não pode ser diretamente responsabilizado pelos seus discursos de ódio. Por exemplo, os elementos do Ku Klux Klan sempre usaram máscaras, assim como a maioria dos trolls rumam pelas caixas de comentários das redes sociais com perfis falsos. Porém, a mesma teoria se pode aplicar à polícia: se a autoridade for exercida debaixo de uma máscara, até que ponto não será tentador abusar desse poder?
O problema desta facilidade moderna em esconder o rosto reside na relativização das funções de herói ou vilão, da bondade e maldade. O que acontece quando os maus forçam os bons a também usar uma máscara? E o que acontecerá na vida real, na esfera pública, programas de televisão, revistas digitais, canais de youtube e afins, se, pela primeira vez, o super vilão de uma história de super-heróis for efetivamente um movimento supremacista branco? Com estas ideias grandiloquente e relevantes, o espectador é atirado para a surrealidade de Damon Lindelof, o prodigioso guionista ao leme desta série da HBO.
A personagem principal é Angela Abar, interpretada por Regina King, uma mulher negra que ajuda a polícia de Tulsa a manter a ordem e a combater a Seventh Kalvary. Para tal, esta usa uma máscara e uma farpela específica, prática que lhe aufere o pseudónimo de “Sister Night”, tal é a semelhança com Pamela Davis, a personagem principal do filme de 1977 com o mesmo nome sobre uma freira negra que, durante a noite, combate o crime nas ruelas nova-iorquinas.
À semelhança da última série de Lindelof, ‘The Leftovers’, em que a vida pessoal do protagonista se entrelaça subtilmente com um enorme mistério, Angela tropeça numa conspiração que está intrinsecamente ligada às suas origens, mesmo que essa urdidura atravesse uma densa neblina, como um puzzle impossível de montar.Tal como em ‘The Leftovers’, essa sensação de impotência será substituída por uma mirabolante e hiperativa narrativa com várias linhas temporais, conforme o *showrunner *transforma elementos triviais e dispersos numa descomunal torre de temas e momentos inesperados, uma cápsula onde o absurdismo se transforma numa janela com vista para o mundo atual — a forma excêntrica como o espectador poderá ser conduzido para certas reflexões é extraordinária.
Por exemplo, num dos melhores episódios da série e, possivelmente, da História da Televisão, o escritor arranjou uma maneira criativa de Angela visitar o passado, ao mesmo tempo que alude aos quadrados iniciais da BD original lançada em 1986 onde é abordada a criação dos Minutemen, o primeiro grupo de super-heróis de sempre. Neste episódio maioritariamente a preto e branco, o espectador que esteja ciente das questões raciais e identitárias que assolam os EUA, e não só, poderá navegar por um rio de assuntos complexos como o *whitewashing *(branqueamento) cultural e a maneira como a sociedade norte-americana está programada para duvidar do cidadão negro, caso este decida exercer certas funções.
O grande triunfo deste episódio em específico e da série em geral é a construção de uma metáfora para o trauma geracional provocado por um século de racismo sistémico, funcionando a personagem de King como um recetáculo onde essas ideias são depositadas, enquanto se faz uma soturna paródia aos simbolismos do género dos super-heróis. Para mais, ao permitir que a audiência entre nos sapatos de uma ou várias personagens com vislumbre do passado, é demonstrado como certas entidades nefastas têm evoluído com o passar do tempo, nunca morrendo, antes adaptando-se aos novos cenários sociopolíticos.
Avaliando-se esta primeira e talvez única temporada de ‘Watchmen’, em que existem várias iterações a um passado repleto de eventos racistas e cruéis, a sua grande mensagem relaciona-se com a necessidade de enfrentar o referido trauma, de iniciar-se, de uma vez por todas, um processo de reconhecimento dos danos causados a várias gerações da comunidade negra. Através de Angela Abar e da sua história pessoal e familiar, é construído um castelo narrativo que põe a nu essa necessidade de expor a ferida da segregação à vista de todos, pois só assim se poderá estabelecer um caminho saudável para a reabilitação. Exemplo da abordagem deficiente a esta problemática é precisamente o facto do “Massacre de Tulsa” ter sido, até a série estrear, praticamente encoberto durante um século, mesmo tendo sido registados, segundo uma investigação da NPR, milhares de mortos e centenas de deslocados.
Sem reservas, Lindelof e os seus companheiros de escrita apontam para um país em constante negação, onde o cidadão negro que queira usufruir de determinadas oportunidades ou frequentar certos círculos tem de se adaptar a algumas condicionantes, sentimento que é ilustrado por um enredo que obriga algumas personagens a literalmente usarem máscaras com o objetivo de esconderem a cor da sua pele. “Homens brancos mascarados são heróis. Mas homens negros mascarados? São assustadores.” Ao contrário da maioria dos filmes e séries do género, a fatiota que levemente adorna os super-heróis tem, nesta obra, uma carga histórica e emocional esmagadora.
Esta trama intensa e inteligente é auxiliada por um trabalho de câmara e edição muito competente. A maioria dos episódios tem o cunho do diretor de fotografia Greg Middleton, que também filmou vários episódios de ‘Game of Thrones’. Um dos aspetos fulcrais é a variação estética que existe entre as várias linhas temporais, cenas que se passam dentro de sonhos e algumas sequências especiais, como partes de uma série de televisão que está na moda sobre o primeiro herói de todos, o misterioso Hooded Justice.
Ademais, consoante a narrativa se desenrola e as suas grandes revelações surgem, os mais atentos poderão relembrar várias dicas visuais depositadas em episódios anteriores que sugerem, precisamente, as ditas ocorrências. Como em ‘The Leftovers’, Lindelof voltou a impingir nos realizadores à sua disposição o hábito de filmar os diálogos recorrendo a justaposições, o que faz com que, ao longo dos vários episódios, se possam encontrar sobreposições entre rostos e posturas, à medida que frases marcantes geram o impacto necessário.
A banda sonora da autoria de Trent Reznor e Atticus Ross, habituais colaboradores de David Fincher, cria um ambiente tenso e opressivo, como se o chão que sustenta as personagens pudesse desabar a qualquer momento. E, claro, estas caricaturas, cuja identidade e características devem ser resguardadas em prol de quem ainda não viu a série, são desempenhadas com louvor por atores experientes e únicos como Jeremy Irons, Tim Blake Nelson, Jean Smart ou Louis Gossett Jr.
Abordando a intimidade de um agente da polícia em particular e a sua ligação traumática com o evento calamitoso que serve de fim à BD — um molusco gigante caiu sobre Nova Iorque matando 3 milhões de pessoas — a série consegue igualmente associar os conceitos de discriminação ao poder de certas narrativas que servem de pilar para as crenças e comportamentos da sociedade em geral. A personagem em questão moldou os seus hábitos diários, vida sexual, sentimentos em relação aos que o rodeiam, entre outros, de acordo com a ideia de que foi vítima e sortudo sobrevivente de um ataque alienígena, a justificação dada pelo governo para esconder que tudo não passa de uma manobra para embutir medo na população mundial, forçando uma união internacional face uma ameaça maior — terroristas vindos de outra galáxia.
Posto este cenário, é impossível não pensar no “11 de setembro”, o ataque terrorista reivindicado pela Al-Qaeda, precisamente em Nova Iorque, que moldou as mentalidades e gerou os conflitos que têm dominado a realidade geopolítica dos últimos anos. Pondo de lado as teorias da conspiração que apontam para um ataque orquestrado pelas próprias organizações americanas, o essencial a retirar da ocorrência é a maneira como esta foi usada pelas forças políticas vigentes para justificar várias leis abusivas e discriminatórias, e iniciar um conjunto de invasões bélicas em vários países árabes: recentemente, após um ano de luta em tribunal, o Washington Post obteve luz verde para aceder a vários documentos confidenciais que comprovam que as administrações Bush e Obama sabiam que a guerra no Afeganistão estava a ser um falhanço e um desperdício de recursos e vidas humanas, dados que esconderam do povo.
Desde o “11 de setembro”, em solo americano, os cidadãos muçulmanos passaram a ser vistos por algumas pessoas como uma presença indesejável e, ainda hoje, servem de bode expiatório para vários problemas relacionados com crimes violentos, mesmo que os números fornecidos pelo FBI mostrem que, neste momento, a maior ameaça à estabilidade são indivíduos conduzidos por ideais supremacistas e fascistas, ligados muitas vezes a movimentos neonazis. Por outras palavras, homens caucasianos, americanos de gema, com acesso fácil a armas de fogo e enfeitiçados por uma nostalgia tóxica que os leva a enaltecer os amuletos pérfidos de outrora, como a bandeira confederada ou a suástica nazi.
Ao fazer da Seventh Kalvary o óbvio vilão da sua narrativa, Lindelof aponta precisamente para esta cada vez mais descarada deturpação da realidade, para um mundo onde certas ameaças são camufladas e demasiadas pessoas são influenciadas pelos roteiros fornecidos por grupos de pressão e políticos cujos interesses ocultos estão diretamente ligados ao crescimento e ressurgimento desses movimentos sinistros, esquema ampliado nos últimos anos com a massificação das redes sociais — a morte e os negócios que lhe estão associados são extremamente lucrativos. Enquanto algumas verdades são escondidas, como o “Massacre de Tulsa”, falsidades são ampliadas, como a maioria da violência ser causada pelas minorias ou emigrantes, fabricando-se, tal como na série, uma sociedade facciosa onde impera um ambiente de conflito interminável, onde cidadãos confusos vagueiam por uma sucata de ilusões convenientes, enquanto alguém, do outro lado da equação, paga a fatura.
A diferença entre realidade e ficção é que, em ‘Watchmen’, a guerra cultural a que assistimos ou na qual participamos diariamente, muitas vezes no conforto do sofá e atrás de um pequeno ecrã, transforma-se em violência literal. A série relembra que o ódio, esse passatempo tão popular, tem consequências graves e duradouras.