A respeito das orquestras Chope, Webster (2009) cita Hugh Tracey, que as considera “um dos principais, se não mesmo o mais avançado, entre os grupos instrumentais do continente africano”. Não que esta seja a única forma de expressão musical que conhecem, mas esta está definitivamente assente nas timbila, nas coreografias, e letras de que aqui se procurar dar exemplo.
As teclas da mbila, singular de timbila, são produzidas a partir de uma árvore, segundo Ilídio Rocha (1986), a mwenje, que eram posteriormente tratadas ao calor de uma fogueira (segundo técnicas que eram transmitidas de pai para filho), e posteriormente afinadas, e perfuradas nos seus extremos, para que estas possam ser fixadas à estrutura da mbila. Esta estrutura é construída a partir da árvore marrufeira, e de tiras de pele de boi, que utilizam para fixarem as teclas, mantendo-as suspensas sobre a “espinha-dorsal” do instrumento (Dias, 1986). Sob as teclas, são aplicados os corpos de ressonância, feitos a partir de um fruto do mato, o msaala, adequando o tamanho do corpo ao tamanho da tecla (Dias, 1986). Os corpos de ressonância são preparados para que produzam o efeito de “mirliton”, aplicando uma membrana (membrana de morcego, diafragma de roedores, etc.), selando-os com cera de abelha, e fixando-os com fibras de palmeira (Dias, 1986). Este efeito de “mirtilon” implica que o som da mbila apresente um som caracteristicamente nasalado, que os Chope parecem apreciar (Dias, 1986). Para percutirem as teclas, servem-se de macetas de madeira, com uma bola de borracha numa das extremidades, obtida a partir da seiva das árvores Landolphia Kirkii, e são contruidas com o cuidado de adequar a sua dureza às teclas, de som mais grave ou mais agudo, em que as macetas vão tocar (Dias, 1986). As watimbila («os vários tipos de timbila», segundo Webster) contam-se seis: chilanzane (soprano ou tiple), sanje (alto), normalmente tocada pelo líder dos músicos, dole (tenor), mbingwe (tenor), debiinda (baixo), e chikhulu (contrabaixo) (Dias, 1986).
Os mais jovens aprendiam a tocar “em teclas de madeira feitas por eles, que apoiavam sobre dois paus numa cova no mato, ensaiando todos os dias neste makokoma, um instrumento rudimentar cuja aprendizagem era orientada por um msiki (mestre), até que mais tarde fossem autorizados a tocar as timbila (Dias, 1986). O estatuto de “músico” parece que era muito importante, verificando-se um certo “profissionalismo”, que podia excluir os bons músicos dos trabalhso agrícolas mais pesados (Dias, 1986). O estatuto de “bailarino” era também importante, conferindo-lhes um certo prestígio, que se reflectia (e podia ser utilizado) noutros campos da vida social (Webster, 2009).
As orquestras são geralmente constituídas pelos tocadores das timbila (vaveti), pelos dançarinos (vasinyi), responsáveis, não só pela coreografia, mas pelo canto do poema, e tambores tingoma (plural de ngoma) (Webster, 2009). Segundo este mesmo autor (2009), a ngodo, assim como a nzumba, representam duas das formas musicais mais populares entre este povo. A ngodo destaca-se pela predominância da melodia sobre o ritmo dos tambores, podendo estes últimos nem sempre serem utilizados, e os dançarinos apresentam-se munidos de parafernália zulu (escudo de pele de vaca, azagaia, polainas de pele de angorá e penas de avestruz), executando coreografias que simulam manobras militares zulu (Webster, 2009). Já a forma nzuma apresenta um ritmo muito mais marcado e enérgico, na qual os bailarinos não usam os adereços da ngodo, utilizando apenas umas maracas numa das suas canelas, possuindo maior liberdade para a expressão e interpretação individual, para solos ou duetos de dança (Webster, 2009). No entanto, no que respeita à letra, as diferenças entre estas duas formas não se verifica (Webster, 2009). Ainda em relação à ngodo, importa salientar que Margot Dias (1986) se refere a esta, como sendo o nome que os Chope atribuem à orquestra, e tem sido esta nomenclatura a mais referida ao longo do presente trabalho.
Imagem 2
A composição de novas músicas, ou poemas, partia regularmente do líder dos tocadores de mbila, normalmente encarregado de tocar a melodia de início de uma peça e de dirigir a orquestra nas suas performances (Dias, 1986). No entanto, havia também espaço para interpretação de músicas e letras criadas por outros, ou para a inclusão de ideias de outros indivíduos nas novas peças (Webster, 2009). O líder dos bailarinos coordena depois as coreografias, de acordo com as peças musicais que o líder dos músicos decidia tocar (Dias, 1986)
Estas orquestras pertenciam, e estavam sob o comando dos régulos, não tendo estes, aparentemente, qualquer influência directa na criação das músicas ou no conteúdo dos poemas cantados (Dias, 1986) Eram sim, os responsáveis por decidir quando é que os músicos actuariam, quer para cerimónias restringidas à aldeia, quer para um encontro de carácter competitivo (msaho) entre as orquestras dos vários regulados (Dias, 1986). Para além disso, as timbila eram também tocadas aquando do regresso dos rapazes iniciados, segundo Ferreira (1975), enquanto “as mães dançavam manifestando a alegria pelo regresso dos seus filhos”. A composição de uma orquestra para uma actuação variava entre doze a quinze músicos, dois matraqueiros, e quinze a vinte bailarinos, estes últimos responsáveis também pelo canto das letras, e todos eles com uma posição previamente definida no terreno (Ferreira, 1986). O tocadores de timbila escolhem preferencialmente uma posição pouco atingida pela luz e pelo calor do sol, para que os instrumentos não desafinem (Dias, 1986).
Cada peça musical, segundo Margot Dias, é constituída por cerca de nova a onze andamentos, com uma duração de três a cinco minutos cada, podendo estes variar no número e na ordem em que são tocados, mas podem ser nomeados: mutsito (introdução orquestral), mutsito (podia haver duas ou três introduções), ngweniso (entrada dos dançarinos), mdano (chamada dos dançarinos), dosinya (dança), chibudo (dança), mzeno (o canto grande), nsumeto (preparação para os conselheiros), mabandhla (os conselheiros), njiriri (final dos dançarinos), e finalmente mutsitso (final orquestral).
Em relação à letra da música, esta é de estrema importância, por manifestar a importante função social destas orquestras, para além de símbolo identitário, meio para a obtenção de poder, e fonte de diversão. Segundo Webster (2009), as letras destas canções “podem veicular duas perspectivas diferentes a que poderíamos chamar interna e externa”. O criador, ou criadores, das letras, devem ter em atenção o público para o qual vai se cantada a letra, devendo conter referências a acontecimentos relativos àquela população, e estando mais ou menos de acordo com a opinião pública dos espectadores (Webster, 2009). Um excerto de uma letra recolhida pelo já referido autor ilustra estas condições:
O hengani malala!
O hengani malala!
Hengani malala vaka Malivila
Mblolo ya Chijangwe!
Kutswela kuhanya nawona nyonyo
Vaka nya tiTsambe!
Nyonyo ya Kufana!
“Oh, sosseguem,
Oh, sosseguem
Sosseguem, homens de Maluvila
O pénis de Chijangwe!”
“Vivam e vejam uma vagina!
Somos os homens de Ntsambe!
A vagina de Kufana!”
Na análise David Webster (2009), sobre este excerto, começa por explicar que os dois primeiros versos fazem referência a uma praga de gafanhotos que destrui as plantações em 1968. Seguidamente insultam as mulheres de Seven Jack, alegando que os seus órgãos sexuais eram tão grandes que seria possível apanhar peixe com eles (Webster, 2009). Na segunda estrofe, a música vai-se tornando mais suave, acompanhada pela letra “oh sosseguem, oh sosseguem”, e o “sossego” é rompido pelo grito “O pénis de Chijangwe!”, num insulto a uma figura conhecida de Seven Jack (Webster, 2009). Entre os chope, a invocação dos órgãos sexuais de um individuo, ou dos da mãe, mulher ou irmã do mesmo, parece ser dos piores insultos (Webster, 2009). Na terceira estrofe, mantem o conteúde sexual, mas enaltecendo o próprio acto sexual como “aquele que confere valor à vida”, em louvor à fecundidade (Webster, 2009). Seguidamente enaltecem-se, num louvor à vicinalidade a que pertencem, e terminam com um insulto a Kufana, a mulher do irmão do chefe da povoação de Seven Jack (Webster, 2009).
A partir deste breve excerto de uma das letra, é possível perceber como é vincada a diferença entre o “nós” e os “outros”, como se demarcam, numa apresentação pública, as identidades, e como são provocados aqueles que não pertencem ao mesmo grupo que os elementos da orquestra, estes últimos fazendo questão de se enaltecerem a si e ao clã ou vicinalidade a que pertencem. Os assuntos abordados podem passar por referências a acontecimentos públicos, a acusações, difamação ou até má-língua, muitas vezes com interesse políticos associados (Webster, 2009). Esta é uma das vantagens do estatuto de “músico” e de “bailarino” entre os Chope: a possibilidade de poderem participar da criação dos poemas, podendo exercer poder sobre a opinião pública, mas sem se puderem afastar muito daquilo que é o entendimento geral da população, e revela também o interesse dos régulos possuírem sob o seu poder orquestras que o enalteçam a si, e ao seu regulado (Webster, 2009). Podemos daqui concluir que as apresentações públicas de orquestras operam como que um fórum, em que os indivíduos são expostos socialmente, resultado das relações de poder que se estabelecem no interior do grupo, e por outro lado, ajudam a enaltecer uma identidade colectiva.
Excelente trabalho de investigação! 😃
Obrigado. Os trabalhos da FAC a dar cartas no Steem ;)
Totalmente cultural. Não conhecia nada disso. Sensacional! ;D
E actualmente património imaterial da Humanidade pela UNESCO. Falarei disso na 3ªe última parte deste tópico!
@djimirji up!