NA ÚLTIMA VISITA QUE RECEBI minha família não trouxe mais que o necessário. Algumas barras de sabonete, um pacote de Mil, papel higiênico. Nada para passar o tempo. Não sou muito chegado a livros, a não ser que sejam daqueles com muitas imagens. Dá pra viajar legal nesses. Pedi para me trazerem uns cadernos de desenho e lápis. Aqui eu tenho tempo de sobra para dedicar a essa minha mania de desenhar. Nunca me levou a nada. Eu nem sou o melhor desenhista, meu forte é copiar imagens, passar qualquer coisa pro papel com o lápis. Mas aqui eu não tenho imagem para desenhar, só os três metros por cinco da minha cela.- Caralho, Tobs! Você que mandou esses desenhos?- É, mano, fui eu mesmo. Gostou?- Ficou bem loco. Cê era tatuador?- Não. Se eu fosse tatuador não tava aqui. Eu desenhava na escola, quando a professora tava passando a lição na lousa. Eu não conseguia me concentrar, aí ficava lá mandando altos desenhos na carteira. Já fui até suspenso por isso.- Ou, rapaziada. Liga o trampo do Tobs. Mil grau!- Cê memo que fez, mano? Do caralho.- Porque você não disse que tinha esse talento, mano?- Talento que não me serve de nada.- Ô, Tobs, cê tem as manhas de lançar um duende na minha perna?Alguma cela mais pro fundo do corredor começa a tocar um rap, provavelmente a do Serginho. Ele é que descolou um toca CD de uns manos que deviam um favor. Mano Brown canta Diário de um detento. “Acendo um cigarro e vejo o dia passar”. O disco todo é uma pedrada. Racionais é foda. Aquela capa de fundo preto com uma cruz dourada e o nome do disco – Sobrevivendo no Inferno. Sem palavras.Queria desenhar aquela capa agora.“Acendo um cigarro e vejo o dia passar”.“Mato o tempo pra ele não me matar”.EU NUNCA TINHA TATUADO ANTES. A palavra correu o pavilhão, de repente brotou uma máquina improvisada. Um tubo de caneta por onde passam algumas agulhas, movidas por um motor improvisado e colado com fita isolante, fazendo com que a ponteira fique batendo como uma máquina de verdade. Esses fios mal encapados ligados na tomada garantem o funcionamento constante. Tudo por conta de “Liga o Tobs? Manda uns desenhos da hora. Dá pra ele riscar geral”.A agulha não corre pela pele da mesma forma que um lápis corre pelo papel. Você precisa esticar a pele, limpar, riscar com cuidado para não furar muito fundo, repetir. O mano que tava afim de mandar o duende na perna tá na fila, sentado no canto do chão com as canelas raspadas. Ele olha com atenção pro cara debruçado na cadeira, nenhuma expressão passa despercebida. Quis um dragão nas costas. Disse que era a única tattoo que ele sempre quis ter desde moleque. Um grande lagarto vermelho, serpenteando toda a costa do mano. Tem umas curvas difíceis, dessas que viajam longe e voltam logo em seguida. Ele treme nos momentos em que minha mão faz o movimento da curva. A agulha sempre dá um pega na pele nesse ponto. As espinhas também não ajudam. Pela cara do Marcelinho, aquele das canelas raspadas, esse aqui deve ter feito uma dessas expressões distorcidas de dor. Ele aguenta o máximo que consegue. Demonstrar dor sendo tatuado significa virar motivo de piada.Faço uma pausa para o baseado. Isso sempre foi raro por aqui. Pelo menos para mim. Uns caras bem relacionados das celas do bloco C fumam o dia todo, desde que chegaram. Eu fumava um aqui e outro ali quando aparecia uma oportunidade. Agora que a rapaziada tá toda riscada e querendo mais, sempre rola um aqui na cela. Me ajuda a ficar concentrado no trampo. Também faz com que eu esqueça que estou aqui por um pouco de tempo.- Pronto, mano. Tá riscado.- Já? Achei que ia ficar o dia todo aqui.- Fiz só os contornos. Quando cicatrizar você volta aqui e eu termino de pintar.- Pode crer.- Só não vá ficar comendo carne de porco e comida muito gordurosa, senão vai inflamar.- Como é que você sabe disso?- É o que todo tatuador sempre fala. Marcelinho, pega o espelho ali pro cara ver como ficou.- Demorou.O cara olha pelos ombros, vê as linhas do dragão se contorcendo em suas costas. Parece satisfeito. “Tá bem do jeito que eu tinha pensado”. Aperta a minha a mão e agradece. Diz que assim que estiver tudo cicatrizado volta para terminar o trampo. Vai gingando em direção à saída.Deixou um maço de Marlboro vermelho na mesa como forma de pagamento. Não lembro a última vez que fumei cigarro de marca.“OUVI DIZER QUE VOCÊ TAVA NA QUEBRADA”. Reinaldo entra pela porta do quarto onde montei uma espécie de estúdio. “Geral levando o seu desenho no couro por aqui, né?”. Esse cara tava na mesma cela que eu lá no começo dos anos dois mil. Tatuei um pitbull no peito dele, e uma carpa na canela. O cara é gente fina, sempre me fortaleceu. “Vamos marcar uma cerveja pra trocar umas ideias. Os manos lá do São Judas vão curtir”. Seu filho tinha acabado de nascer na primeira vez que ele foi um interno. Quando saiu, o moleque já tinha seis. Ficou uns quatro anos em liberdade, até rodar em uma fita no posto Ikeda. Foi meter o loco pra tirar um dinheiro, mas o carro de fuga eram as suas pernas. Hoje o seu filho tem dezesseis.- Achei que você ainda ia ficar mais um tempo na Capelinha.- O advogado recorreu, to respondendo em liberdade.- Tem que ficar na linha, heim.- Eu to na linha. Na linha de frente.- Não consegue achar um trampo?- Meu irmão me ofereceu um, de pintor e tal. Eu até fui uns dias. Paga mal e é chato pra cacete. Essa vida não é pra mim, eu quero grana alta.- Tá fazendo o que?- To fazendo uns corres, tá ligado. To com uma encomenda que vai me render uma nota.- Saquei. Toma cuidado, mano. Tá ligado que os home não tão dando descanso, neguinho rodando de bobeira. Forjaram um moleque daqui, esses dias mesmo.- Que fita. Mas pode pá que eu não sou moleque. E esses caras não são homens de criar comigo.- Se você tá dizendo. Falô, mano. Acabou de chegar um carinha pra tatuar.- Demorô. A gente se tromba no rolê, Tobs.- É nóis.Um moleque entra pela porta e pergunta se tá tudo certo. Confirmo e começo a preparar os materiais. Ele tá numa de expandir uma tribal no braço esquerdo, até a última ponta aparecer no punho. Faço uma cópia do desenho e peço que ele se sente na cadeira. Tatuadores profissionais usam um gel específico para fixar o desenho na pele. Mas se você fizer os contornos com uma caneta Bic, qualquer creme a base de álcool resolve. Tem uns amigos dele também. Tão sentados na beira da cama, vendo meu portfólio. “Aí, tem galho se eu fumar um aqui?”. Seja meu convidado. Ficamos ali algumas horas. Rodaram tantos baseados que às vezes me esqueço que estou riscando um cara. Minha carreira melhorou, uso uma máquina profissional e troco sempre que possível. Minha mulher compra na internet por duzentos reais.Assim que acabo de fazer os contornos, a rapaziada se manda em um Fox cinza, deixando para trás duas onças – uma pelo serviço de hoje e outra como adiantamento. Tiro as luvas e acendo um cigarro. Eight. Já tem muito tempo que não fumo cigarros de marca. O celular começa a vibrar em cima da mesa, seguido de uma explosão de som pesado dos anos 90.- Salve, Tobs. Reinaldo aqui. Se liga, tem um mano lá na Nova querendo fechar as costas. Paga uma nota. Cê topa?- Ô, se topo!DÁ PRA TIRAR UNS TREZENTOS REAIS EM UM DIA BOM. Subtraindo o preço gasto em material, eu consigo uns duzentos de lucro. Muito mais do que eu costumava conseguir cometendo pequenos roubos e vendendo drogas. Era tenso. Fazer um bom assalto pode garantir seu mês, dependendo do seu alvo e de quantas pessoas estiverem envolvidas. A polícia procura por você até nos confins do inferno, mas se esperar a poeira baixar e ninguém ratear a fita, tudo fica tranquilo. O negócio é que sobra muito tempo livre. Não é o tipo de profissão que se exerce todos os dias no horário comercial. Isso te faz gastar todo o dinheiro em porcaria. Chega na metade do mês sem um tostão e tem que voltar pra atividade. Vender droga é mais suave. Depois que você consegue transportar o seu produto pra um lugar seguro não tem mais erro. As pessoas vêm até sua porta para te entregar os mais variados seres da fauna brasileira em forma de cédulas. Tudo em troca de uma brisa pra noite. Ou pra tarde. Tem até quem goste de usar de manhã, depende muito da ocasião. Mas tudo que é fácil demais tem um problema. Nesse caso são os nóias que ficam no seu pé o dia todo. Detesto viciados.Hoje não preciso mais disso. Eu só coloco tinta no couro dos nóias, não tem porque eles ficarem em cima. Pega esse guri, por exemplo. Me disse que a mãe dele está plenamente ciente que ele pretende tatuar um cifrão dourado com duas folhas de maconha nas extremidades e um diamante no topo. Um dos caras que apareceu com ele, um cabeludo que também veio com o rapaz do Fox, fez o desenho bem na minha frente. No meu caderno com o meu lápis. O moleque tava visivelmente fora do ar. Fumou tanto que o rosto tava derretido. Não deve ter sido o melhor trabalho da vida dele, disseram que ele é profissional. Mas afinal, quem sou eu pra questionar essa rapaziada? Contanto que eles me paguem eu lanço até um pinto na testa desses lesados.- Cara, se eu fosse você não tatuava isso. Não to na menor condição de fazer um desenho bom e o material não ajuda muito. Preciso das minhas paradas.- É nada. Ficou muito loco.- Tem certeza que sua mãe deu autorização? Eu não quero problemas depois.-Relaxa, Tubs. Ela nunca vai descolar que eu fiz aqui.- Esse desenho tá muito ruim.- Eu curti. É esse mesmo, Tubs.Ele estica o pescoço para a esquerda e aponta com o dedo o local onde quer que o desenho fique.- Pode lançar.- Você que sabe, mano.- Enquanto isso bola um beck aí pra gente- Que nada, to vazando. Já to aqui mó tempão, vou pra casa comer alguma coisa. Falô.- Pode pá.O adolescente tira um caroço de maconha do bolso e começa a dechavar na mão. Enrola tudo em um guardanapo de lanchonete – a famosa seda pró-lanche – e passa a goma. Depois de secar o béqui passando a chama do isqueiro rapidamente pelo comprimento do papel, ele acende. Traga igual um marginal formado e me passa. Meu diploma de marginal é bem mais antigo que o dele, consigo tatuar com as duas mãos livres e o béqui na boca, sem deixar que a fumaça irrite meus olhos. Fumaça no olho é tenso, arde mais que cebola. - E aí, maninho, que que cê faz da vida?- Trabalho pra minha avó de vez em quando.- Vai pra escola não?- Não. Me expulsaram e eu nunca mais voltei.- E a sua vó não vai ligar de te ver com uma tattoo dessas no pescoço? Pode até te mandar embora.- Ela não vai nem ver. Vou cobrir o pescoço no trampo. Aquela velha não pode controlar a minha vida desse jeito.- É zika. Tinta no pescoço dá muita visibilidade. Tanto a boa como a ruim.- Tô ligado. Mas se eu tiver grana vou fechar o corpo inteiro.- Liga nóis.O trampo é rápido. Em menos de uma hora e meia o garoto está saindo do estúdio com um cifrão amarelo no pescoço, com um sorriso de orelha a orelha. Deixou uma nota de cinquenta e um baseado como agradecimento. Subiu a avenida e deve ter se mandado pra Nova, que é de onde vêm a maioria dos meus clientes. Ainda dá tempo de bolar um fino e escutar um som antes que a minha mulher venha me chamar para a janta.“ESCUTA, TADEU, UMA HORA DESSAS VOCÊ VAI RODAR”. Ele fez doze anos mês passado. Descolei uma caixa de lápis de cor da Faber Castell pro guri, na promessa de ensinar a desenhar e tatuar. Não podia ter ficado mais contente. Sempre que eu to no estúdio ele dá as caras pra me ajudar e ficar observando como se faz. “Vou rodar nada, a minha mãe nem desconfia”. Não vai muito bem na escola, isso eu garanto. Tá sempre levando suspensão e advertência, até o dia em que ele largar de vez. Rolou até uma aposta uma vez. Se com catorze anos ele abandonar ou for expulso, ganho cem reais do irmão dele, Ricardo. Não devia estar fazendo esse tipo de aposta na vida do meu enteado, mas a gente tava bebendo umas brejas e rolou no meio da brincadeira. “Cê acha mesmo que ela não descola que você fica na esquina fumando maconha com os moleques? Ela mesma me pediu pra falar com você”. Já tá naquela fase de matar aula pra ficar de bobeira na rua. Começa assim.- E daí? Não to fazendo nada demais.- Não adianta de nada ter moral com esses caras. Vai na minha.- Não to querendo moral de ninguém. Eu faço porque sou homem.- Homem cumpre com as responsabilidades. E você só tem doze anos.- E o que você quer que eu faça?- Vai jogar bola, sei lá. Não posso te obrigar a nada, só to dando o conselho. Aí é com você.- To ligado. E aquela mina, será que vai aparecer? Ela é gostosa?- Não vai falar esse tipo de coisa na frente dela. É gostosinha.- Vou ficar pra ver.Outro dia passou uma garota aqui. Parece que o moleque da cifra espalhou a palavra de que conseguiu uma tatuagem por pouco dinheiro, e a mina, de uns dezoito anos, veio chamar no portão. Curti a ideia. Um retrato do TuPac na coxa direita, vai ficar loco. As vezes eu amo meu trabalho. Me dá a oportunidade de prestigiar meus ídolos nas coxas lisas de meninas novas. Um puta outdoor pro cara, se me permite opinar. Não julgue errado, não vou ficar de pau duro tatuando a mina, mas não tem como passar despercebido. Preciso focar. Vou até o banheiro fumar uma ponta.Teve uma que teve a sacada de sacanagem mais batida. Me pagou para tatuar uma pequena pimenta vermelha um pouco acima da virilha. Dava pra ver, e sentir, os pelos nascendo ásperos na buceta recém-raspada. Na hora eu achei que tava suando frio, tinha muita putaria rolando nas minhas duas cabeças. Assim que ela se foi eu bati umas três punhetas seguidas. Minha mulher fica na casa bem ao lado. É bom não arriscar demais.Pedi pro Tadeu ficar ali comigo, trocando ideia sobre qualquer coisa pra manter a concentração enquanto dava forma ao Pac. Deu certo. O moleque tem uns papos que te fazem pensar. Acho que é porque vejo a mim mesmo na forma de criança. A máquina não para de zumbir.- Cê sabe aonde o Ricardo foi?- Descolou um trampo no trecho. Tá fazendo asfalto daqui até Sorocaba.- Trecho?- É. São umas empresas que pegam a galera pra trabalhar em outros lugares. Você nunca sabe onde vai parar. Mas ele me disse que depois desse trampo nas estradas, vai largar o trecho, não quer ficar rodando o estado. Ele gosta daqui.- Ele é pinel. Se fosse eu, já tinha vazado pra um lugar melhor.- Quando você for de maior pode ir. Mas não é assim tão simples.- É só fazer. O pessoal pensa demais e acaba ficando parado.- É nessa de “só fazer” que neguinho roda. A sua vez vai chegar, fica só vendo. Sua mãe vai te quebrar e eu vou dar risada.- Já tá até rindo, né? Se você não contar ela não vai ganhar a fita.- Ela já ganhou. Só tá esperando a chance de flagrante.- Tá me tirando? Isso nunca vai acontecer.O moleque tá debruçado na cama, chorando. Levou uma bela surra da mãe, que ficou na escondida atrás de uns arbustos na esquina na esperança de pegar o filho fumando um fino. Flagrou.Hoje a janta tá boa. Minha mulher tá bufando por causa do Tadeu. Ricardo tá fora e só volta na terça. Eu tento não rir quando ouço os soluços do guri vindos do quarto. Mas sempre sobra um pouco de riso no canto da minha boca. Limpo a boca limpa com o dedo, pra disfarçar as risadas. Minha mulher está curiosa quanto ao motivo. “Apareceu um moleque muito engraçado no estúdio, cê tinha que ver”.Tô feliz e vou dormir abraçado com ela hoje.RAQUEL ACABA DE ENTRAR NO BANHO e eu to aqui no quintal fumando um Eight e vendo a lua. Uma das vantagens do interior é que dá pra ver muita estrela à noite, bom pra ficar brisando. O Tadeu vai ficar na casa da avó hoje, comendo um rango bom e sendo mimado. Hoje a noite é nossa – minha e dela. Isso se ela não tiver se estressado demais no trabalho e decidir dormir cedo. Acontece.Ela é merendeira em uma escola de ensino fundamental, dessas cheias de criança piolhenta e atentada. Outro dia ela tava me falando que um moleque de oito anos enfiou um lápis até o talo no olho de um colega. Cego no ato. A maioria das pessoas não vê, mas essas coisas ocorrem com uma frequência maior do que deveriam nas escolas. Estão formando os cidadãos de um futuro melhor. Futuros trabalhadores do campo. Futuros construtores de autoestradas. Futuros funcionários de supermercado. Futuros serventes e garis. Futuros assaltantes, prostitutas, traficantes e assassinos. Futuro tenebroso.Espero que ela não esteja com isso na cabeça. A única coisa que ela deve pensar é em como vamos estar cansados amanhã de manhã por causa de toda uma madrugada de sexo desenfreado. Cruzo os dedos e bato na madeira. To precisando.Vou até o quarto e me sento na beira da cama. A TV tá transmitindo o Jornal Nacional, falando de como a corrupção se espalha de forma descontrolada pelo país por culpa dos comunistas do PT. Se tem alguma coisa de errada no país é culpa do PT. Bando de ladrão. Nem sei o que eles roubaram da gente, mas tão sempre envolvidos nessas tretas, sempre nas manchetes. Deve ser verdade.“Robson, coloca ração pro cachorro. Vê se ele para de latir”. Dito e feito, o cachorro não para. O vira-lata tá possesso com o gato sentado na nossa calçada, a uns trinta centímetros do portão. Ele fica olhando pro cão como se soubesse que ele não pode fazer nada. Bicho debochado. Mereceu a pedrada que eu acertei em suas costas. Saiu berrando como se eu tivesse acertado um tiro de oitão no seu peito. Teatro. Volto para a cama e me deito com os braços cruzados atrás da cabeça. Willian Bonner fala e fala, mas eu só vejo o teto baixo e espero pelo momento em que minha mulher vai cruzar a porta do banheiro com uma toalha enrolada no corpo, cabelos molhados e cheiro de creme na pele morena. As coisas boas da vida.“Tá cansado, amorzinho?”. Ela acaba de quebrar a barreira entre realidade e imaginação, aparecendo exatamente da forma como pensei. A única diferença é que de sua pele sai um pequeno filete de vapor que sobe em curvas e se dissipa. Meu deus, to hipnotizado. “Não, tava só marcando bobeira”. Ela já deve ter percebido a maneira obsessiva que olho para seu corpo envolto na toalha branca, não consigo disfarçar. Uma gota corre de seu pescoço em direção ao peito, fazendo uma curva perigosa à direita no seio esquerdo, se escondendo debaixo da toalha. Foi surreal. Ela sorri. Retribuo na mesma moeda, com malícia. “No que você está pensando?”. Me levanto e abraço aquele corpo quente, deixando um beijo bem suave em seus lábios. A toalha desliza pelas costas, fazendo uma breve pausa nos quadris, percorrendo as coxas, panturrilhas e calcanhares até encontrar o chão do quarto. Só a luz da TV ilumina o ambiente. Que cena.Espero não estar muito cansado amanhã.EU DISSE PRA NÃO BUZINAR NA FRENTE DE CASA. Era só chegar e entrar, não tem galho, eu conheço essas caras há anos. É foda, esses tipos fazem exatamente o contrário do pedido só para provar que não recebem ordem de ninguém, mesmo não tendo sido uma ordem. Ainda teve a ousadia de derrapar a porra do Fiat Uno fodido em frente de casa, deixando uma listra preta de pneu. Desceu o braço na buzina e desandou a berrar na janela.- Tubs! Tubs! Anda, caralho, os manos tão tudo esperando na casa do Queixada!- Eu não disse pra não buzinar na frente de casa? Quer ficar chamando atenção pra mim, arrastar a quebrada? Porra!Ele olha sério para mim e depois se desvia para baixo. Deve ter achado que eu ia achar graça no ato rebelde. Cusão. Esses tipos duram pouco nas ruas. “Pera aí que eu vou buscar minhas coisas ali no estúdio e em cinco minutos estamos partindo.” Só de ouvir falar nos cinco minutos já aparenta impaciência. “Se buzinar de novo pode mandar os caras se foderem que eu não tatuo ninguém, morô?”. Se eu não aparecer lá os caras vão vir aqui me chamar de duas palavras. Aí vou ter que explicar a desfeita que esse moleque do Uno tá fazendo e ele vai ficar marcado. No primeiro erro que ele cometer os caras vão subir o malucão sem dó. Direto pra São Pedro, que deve encaminhá-lo pro inferno. Sabe tão bem quanto eu como o jogo funciona. Tem que ter disciplina, respeito na quebrada alheia. Imagina se os vizinhos chamam a polícia pra mim e os caras dão de cara com um estúdio de tatuagem clandestino que topa qualquer parada por cinquenta reais? Considerando minhas duas passagens pela Capelinha, é certeza que eu volto pro cárcere. Nunca mais quero isso.Subimos o Alvorada e saímos pela Semag, pegando a avenida em sentido ao centro. Chegar na casa do Queixada é mole. Só quebrar à direita na rotatória e seguir pela Nova até a Cruz de Ferro. Continua reto e vira à esquerda quando chegar à escola Vó Landa. A rua de terra íngreme leva em direção ao pasto, a casa do mano fica ali, com um Fusca desmontado em frente como ponto de referência. Não tem erro. Desço com a minha mala de suprimentos e entro pelo portão. Os caras estavam todos jogados no sofá e tinha um deitado no colchão encardido que fica no chão. Sacolas de cocaína se amontoam em cima da mesa, ao lado de capsulas vazias que em breve estarão recheadas e circulando na mão dos boy. Cada um com seu baseado, eles me cumprimentam. Até o Germe tá ali, vai vendo.- E aí, Tubs, suave?- Suave rapaziada. Já tão na atividade, né?- Pra começar o dia bem. Dá uns bolas aí. A gente tem que enfiar esse pó todo dentro das capas e entregar pro Rafa da Vila. Fazer isso careta nem rola.- Pode pá. Mas e o Bochecha? Vim aqui pra lançar aquele palhaço nas costas dele. Era isso mesmo que ele queria, um palhaço?- Essa fita mesmo. Ele tava falando que vai ficar zika. Tem que ter moral.- É, se os canas verem vai ficar feio.- Vai ficar morto. Daqui a pouco ele tá aí. Só foi ali fora passar um pano pro mano na Capela.- Demorou. Deixa eu dar uns pegas nesse béqui enquanto isso.- Alguém acorda o Queixada, nessa porra. Vai ficar o dia inteiro dormindo e deixar a gente trabalhando aqui.- Deixa ele. Melhor ele ficar dormindo do que vir aqui e acabar travado. Vamos colocar ele na entrega.- Então fechou. Vamos começar essa porra.- Deixa eu terminar esse menor.Quando Jeferson apaga a bituca do cigarro no chão de cimento batido, Bochecha desponta na porta com um ar sério.- E aí, mano, Deu tudo certo?- O cara acha que a gente tá enganando ele, que estamos cheirando mais do que vendendo. O negócio é que nunca fiquei devendo nada pra ele, e trocar de fornecedor é mole se ele ficar nessas cobranças nada a vê. Tá tranquilo.- Fala, Bochecha.- Salve, Tobs! E aí, que hora nos vamos começar esse trampo?- Por mim a gente começa agora mesmo.- Demorou. Pode ser por aqui mesmo?- Se tiver espaço pode ser em qualquer lugar.- Puxa uma cadeira então. Aí, Anderson, arrasta aquela mesa pra cá.TODO MUNDO É FODÃO ATÉ COMEÇAR A OUVIR A MÁQUINA ZUMBIR fora do seu campo de visão, sabendo que em segundos ela vai furar sua pele a milhares de agulhadas por minuto. Ainda mais se for uma tatuagem grande como essa. A pele se contrai e dá pra sacar a ansiedade de cada um. Depois de um tempo se acostumam. Tem até quem gosta da dor e acaba se viciando. Bom pra mim. Mais trabalho.O Bochecha tá levando na moral. Marginal de nascença, tá com o couro todo riscado. Uma truta no antebraço esquerdo, o brasão do Corinthians no peito, Jesus Cristo no braço esquerdo e o nome da mãe em letras ornamentadas no antebraço direito. Não tem novidade nenhuma pra ele. Se debruça na cadeira e acende um Eight, fica ali trocando ideia com os parceiros de crime, discutindo o fluxo.- Tá ligado que os manos do Vale rodaram. Agora os caras da Vila vão crescer pro centro.- Os boy do centro já compram na vila há mó tempo. Somos a segunda opção.- A gente devia aproveitar e colocar uns vapores nossos na noite, com um pó menos alterado. Fazer propaganda, saca?- E se arrastar a quebrada?Germe olha por debaixo da aba do boné. Ele tem uma biqueira na esquina de baixo, vende só maconha. Mas se a polícia começar a rondar o lugar ele roda e deixa de ser um dos principais traficantes de erva da cidade.- Pode pá. Tem que fazer meio dechavado. Ninguém aí tem contato no meio dos boy, pra gente infiltrar essa ideia?- Ninguém.- Puta que o pariu.Ele quer que eu desenhe o máximo que eu conseguir hoje. Se possível terminar o trampo todo e evitar uma nova sessão. Acho que dá, contanto que eu fique o dia todo trabalhando nisso. Já são cinco da tarde e os contornos estão prontos, só preciso definir os tons de sombra e colorir. Meu braço está pesado. Paro para dar uma alongada.- Cansou, Tobs?- Não, só to dando uma esticada pro braço não dormir. Dá pra levar.- Jeferson, pega uma pro Tobs. Traz da boa, não daquela na gaveta da cozinha.Não sei exatamente do que eles tão falando, mas posso imaginar.- Tá na mão.- Vai lá, Tobs. Essa aqui concerta qualquer braço, garanto. Não tem nada parecido na cidade, nada que chegue perto.Aquela cocaína tava brilhando. Escama purinha, sem fermento e outras porcarias que os traficantes costumam servir pros clientes. Não sou chegado no pó, mas esse tá especial e eu não posso passar a chance. Minhas pupilas dilatam na medida em que a droga atinge minha corrente sanguínea através das minhas vias nasais. A energia percorre meu corpo e eu to a mil. O nível de empenho nessa tatuagem subiu ao ponto de quebrar o teto. Cuidado.- E aí, que que cê achou?- To achando que eu sou o superman. Bom pra caralho. Tem muito tempo que eu não cheiro, mas sei dizer que nunca experimentei nada parecido.- Fica de cortesia pelo trabalho. Dá pra continuar?- Me dá um pega desse béqui antes, e um gole de cerveja, só pra me tirar dessa pilha. Se eu ficar muito agitado vou acabar fazendo merda.- Toma aí.Volto para o trabalho, aperfeiçoando os mínimos detalhes do desenho com o maior interesse que já tive na vida. Minha vontade mesmo era sair correndo e gritando e dar um bom soco na cara de alguém desconhecido no meio da rua, só pra extravasar. Tenho que manter a responsabilidade e cumprir com a minha palavra.A NOITE CAI, O FRIO VEM, O PALHAÇO NAS COSTAS DO BOCHECHA ESTÁ QUASE VIVO. Sei que ele não vai sair por aí mostrando essa figura nas costas pra todo mundo, ele não é suicida. Mesmo assim to sentindo um orgulho dessa tattoo em especial. Está muito bem feita.- Nilsão rodou.- Tô sabendo.- Marcelo também.- Tô sabendo.- Os caras tão ligados que aqui tem várias biqueiras. Mas eles tão vindo muito em cima. Ou tem um cagueta na quebrada ou é obra de zé povim. - Zé povim não é. Não sei de ninguém nesse bairro que gosta de polícia. Eles levam a gente na boa.- É. Então é um cagueta mesmo. Mas quem?- Um dos manos que rodaram? Será que eles fizeram algum acordo?- Isso a gente descobre. Se for isso, o cara assinou a própria sentença de morte.- Pode pá.Esse papo tá começando a me deixar na paranoia. Acho que vou parar de tatuar traficantes em seus locais de trabalho. Paga bem, mas não vale puxar cadeia por isso. A partir de hoje só tatuo esses caras no meu estúdio, longe de problemas e perto da minha família. Por outro lado, não sei se quero essas pessoas perto da minha família. Sei lá, só quero me mandar daqui o mais rápido o possível.- Vocês ouviram o barulho de um carro parando aí na frente?A paranoia foi instalada no recinto. Uma bomba atômica de nervos a flor da pele.- Jeferson, abaixa o som aí. Vamos ver qual é a dessa fita.O som morre. Nasce o silêncio. Batidas no portão de metal.- Derick Moreira, aqui é a polícia!Olhos arregalados se espalham pela sala. O sangue congela.- Derick não é o nome do Queixada?- É.- E agora, ele vazou tem horas. Os caras devem ter escutado o som. Alguém tem que ir lá resolver.- Bochecha, é com você.- Sai fora! Nem a pau que eu vou sair com esse palhaço nas costas pros caras brincarem de tiro ao alvo comigo.- Cadê o Paulão? Ele tava mais suave que a gente. To travadão.- Paulão foi cagar.A descarga ecoa pelo recinto ausente de som. Paulão entra na sala.- Por que a música parou? Cadê os bagulhos?- Tão moqueados. Se liga, você tá bem mais suave que a gente. Vai lá fora e fala com a polícia.- Quê?- A polícia tá no portão, caralho!- Derick Moreira, sabemos que você está aí!- Já estamos demorando muito pra dar resposta, eles vão desconfiar. Se pá até invadir o barraco. Aí fodeu.- Porra, Queixada!- Vou lá. Digo o quê?- Fala que você tava cagando e que o Queixada viajou pra puta que o pariu e te deixou tomando conta do barraco.- Demorou.Paulão passa pela saída anunciando “Tô indo!”. Apenas observo com apreensão. Todo mundo tenso, começo a guardar meus suprimentos de tatuagem. Talvez eu precise fugir pelo meio do brejo. Ainda não recebi pelo serviço, pelo amor de deus.- Qual o problema?- Você é Derick Moreira?- Não. Eu sou o Paulo. O Derick não tá, foi viajar e me deixou tomando conta da casa.- E porque a demora pra atender?-Eu tava no banheiro. Comi uma carne meio estranha mais cedo, no trabalho.- Trabalha no que?- No barracão de tomate do Alemão, ali pra cima.- Sei. Sabe quando o Derick volta?- Semana que vem ele deve estar aí, disse que era só o fim de semana.- E porque você não abre o portão? Tem alguma coisa pra esconder aí dentro?- É só uma mania que eu tenho.Paulão abre o portão, que range enferrujado, dando visão para a porta da frente, fechada. Foi o suficiente para deixar Jeferson em pânico completo. Saiu correndo desesperado pela cozinha, derrubou um monte de coisa no caminho, fez barulho pra caralho. É certo que o Paulão vai pagar por isso, mas agora é cada um por si. Enquanto um PM rende Paulão, seu colega parte pra dentro do barraco com uma doze de prontidão, para espalhar miolos e tripas se preciso. Quando ele começa a avançar pelo quintal, onde o cachorro late alucinadamente, todos já tinham pegado o que estava a sua frente e corrido para o fundo, na intenção de pular o muro de trás e fugir pelas ruas de terra em direção ao brejo escuro. Não sou mais um moleque, mas assim como andar de bicicleta, pular um muro para dar um perdido na polícia é uma coisa que não se esquece. Meus pés alcançam a rua, to quase livre de problemas. Se eu me esconder na escuridão durante toda a madrugada os caras não vão me pegar. Se pegarem já era. Capelinha. O fim da rua tá logo ali. O brejo tá logo ali. Só mais um pouco.- Parado aí! Coloque suas mãos atrás da cabeça e fique de joelhos!A PM já tinha colocado algumas viaturas em pontos de fuga estratégicos. Era uma armadilha o tempo todo. Eu só queria ganhar um dinheiro, não fiz nada de errado. Quero ver provar. Todo mundo rodou. Trafico, formação de quadrilha, exercício ilegal da profissão de tatuador.Capela do Alto.Desenhar. Esse talento nunca me serviu de nada.
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Eu tentei ler todo e não consegui :D Bom encontrar mais BR aqui.
Ola, sou novo por aqui.
Tentei ler seu post, porem ele se torna cansativo. Aconselho a voce adicionar paragrafos e novas linhas. Vai ficar melhor.
Abracos,