A morte de Senna foi o fim da minha infância. Hoje Hamilton me levou de volta para ela
O escritor argentino Julio Cortázar tem um conto precioso, chamado “O Perseguidor”, sobre os últimos dias de vida do jazzista Charlie Parker. Há um trecho, particularmente marcante, em que o músico relata ao narrador a estranheza de uma sensação experimentada no metrô de Paris.
Ele conta que dentro do vagão, com o trem em movimento, se perdeu em memórias distantes. Voltou ao bairro da infância, ao rosto dos amigos, à imagem da mãe retornando do mercado com as compras. Relembrou, com nitidez, cenas, vozes e cores. Resgatou diálogos. Reviveu o passado como se fosse presente. E então vem o espanto: ele percebe que, enquanto lembrava de tudo isso, o metrô havia percorrido apenas uma estação.
Lembrei do conto na manhã deste domingo, ao navegar pelo feed infinito das redes sociais e me deparar com Lewis Hamilton dirigindo a McLaren de Ayrton Senna em Interlagos. O vídeo devia ter menos de dois minutos – a distância entre uma estação e outra. Mas ele me transportou, feito o personagem de Cortázar, de volta para a infância – para cheiros, gostos e sons que estavam guardados em algum porão da minha memória.
Onde você estava quando Ayrton Senna morreu? Eu estava em Canoas (RS), na sala do meu melhor amigo, com quem costumava assistir às corridas – e com quem colecionava figurinhas de F1, e na casa de quem dormia para vermos juntos as provas de madrugada, e com quem debatia infinitamente quem era melhor, se Senna ou Mansell, Senna ou Prost, Senna ou Piquet. Eu estava na casa dele quando Senna bateu e estava na casa dele quando a Globo interrompeu a programação para anunciar, na voz de Roberto Cabrini, que Ayrton Senna da Silva estava morto. Foi ele que eu vi chorando quando eu, também chorando, olhei para o lado em busca de alguma explicação: como Senna poderia estar morto?
O vídeo de Hamilton pilotando a McLaren de Senna neste domingo de manhã, na pista molhada de Interlagos, também me levou de volta à casa dos meus avós em Garibaldi, na serra gaúcha: os tios na sala vendo a corrida, as tias na cozinha preparando a salada de maionese, a cuia de chimarrão passando de mão em mão, o cheiro de churrasco saindo do porão, escalando a parede e entrando pela janela, Galvão Bueno gritando “Ayrton, Ayrton, Ayrton Senna do Brasil” – e aquela sensação de que todos nós, a família inteira, havíamos vencido, porque Senna era indissociável de nossos domingos, porque Senna era um de nós.
Eu tinha 12 anos quando Senna morreu. Os hormônios estavam desordenados, a voz ora engrossava, ora esganiçava, o corpo crescia todo desengonçado, as gurias da escola ficavam cada dia mais bonitas, os pensamentos apontavam para a adolescência, mas havia uma resistência da infância, ela não queria ir embora. E aí o Senna morreu. E na segunda-feira, ao despertar com Senna morto, ao encarar um mundo que nos ensinava que até Ayrton Senna poderia morrer, era como se a infância tivesse acabado – até Hamilton me transportar de volta para ela em um vídeo de menos de dois minutos de duração.
Para quem tem menos de 40 anos, isso tudo pode parecer um sentimentalismo exagerado. E, bom, talvez seja mesmo. Mas não deixa de ser impressionante a capacidade que Ayrton Senna teve para se infiltrar no cotidiano de uma geração inteira – a ponto de, mais de duas décadas após sua morte, ainda conseguir transportá-la de volta para aquelas manhãs de domingo.